domingo, 28 de junho de 2020

[0241] Parte de uma entrevista a Nuno Santos, ou ao rapper Chullage


Nuno Santos nasceu em Lisboa, em 1977, filho de pais cabo-verdianos, mas cresceu e vive na Margem Sul, primeiro no Monte da Caparica, depois na Arrentela. Licenciou-se em Sociologia, foi um dos fundadores da «Khapaz — Associação Cultural de Afrodescendentes», com sede no Seixal, e desenvolve trabalho de acção social e cultural.
É um dos músicos fundamentais do hip hop português, com uma carreira de mais de duas décadas, onde é conhecido por Chullage. Através das suas letras questiona as desigualdades sociais e o racismo, como nos álbuns Rapresálias (2001), Rapensar (2004) e Rapressão (2012).
Nos últimos anos alargou a sua intervenção a outras áreas, integrando o «Teatro Griot», co-fundando o «Peles Negras Máscaras Negras - Teatro do Escurecimento» e colaborando com os artistas visuais Vhils e Mónica de Miranda. Actualmente dedica-se ao desenvolvimento de «Prétu», alter-ego artístico em que explora as suas origens africanas.

Fotografia de Daniel Rocha para o jornal «Público»

Cinco perguntas (de Mário Lopes), cinco respostas (de Nuno / Chullage), de uma entrevista ao jornal «Público»:

É músico e sociólogo, trabalha em teatro e em artes visuais. Todas actividades afectadas pelas pandemia. Como foi a sua vida neste período?
Devo confessar que aqueles primeiros dias até foram bons. Estava muito cansado e há muito que me propunha estar em casa. Ao mesmo tempo que o meu corpo estava a entrar num espaço de descanso, a cabeça estava a acelerar, a tentar perceber o que se estava a passar. A minha preocupação, inicialmente, não foi tanto do ponto de vista da saúde, mas de tentar perceber, do ponto de vista político e económico, o que se poderia instalar a partir disto.

Como dizem os manuais de auto-ajuda e como ouvimos tantas vezes durante a crise financeira anterior, esta crise também será uma oportunidade?
Esta crise é trágica, mas será uma oportunidade para a grande finança e para o fascismo tecnológico. Quando for dito às pessoas que serão instalados sistemas de vigilância para que possam circular em segurança e saber quem está contaminado, vão aceitar. Porque têm medo de morrer. Aceitando isso, terão de aceitar também tudo o que permitirá essa tecnologia: saber onde estás a cada momento, como bate o teu coração, o que acabaste de comprar, com quem estiveste. As tecnologias trazem possibilidades e trazem o outro lado, mais sombrio. O que me assustou foi não saber se iremos reflectir sobre tudo isto a tempo, com a mesma velocidade com que esta acção da natureza chegou e se impôs enquanto nós andamos aos tropeções a tomar medidas. Não acho que devamos pôr a nossa saúde em risco, digo é que temos de ser críticos e não ficar pela câmara de eco do Twitter e do Instagram. Se já nem podemos tomar como verdade o que é tido por informação, quanto mais viver numa sociedade em que a opinião se tornou a verdade.

Durante a pandemia, foi abordada a forma como a crise de saúde pública espelhou as desigualdades sociais. Por exemplo, o Bairro da Jamaica, no Seixal. Foi estigmatizado como foco do vírus, ou levantou a discussão sobre a falta de condições de habitação?
A questão do Jamaica é consequência de um discurso que se está a instalar de que os pretos e os ciganos é que estão a passar o covid. Mas, como disse o presidente da câmara de Loures, “e os transportes?”. As pessoas foram postas em casa, a seguir disseram-lhes que tinham de ir trabalhar e os transportes não acompanharam essa necessidade. Já viajei em hora de ponta num transporte público e era como se não houvesse covid. É um discurso que está a aparecer cada vez mais: “Estes gajos é que propagam isto”. Não é verdade, existem focos, de várias formas, em sítios diferentes. Tal como acontece nos Estados Unidos, há uma racialização desta doença. É uma situação complicada, mas haverá gente a ter epifanias: “temos de melhorar as condições de habitação”. Mas essa consciência devia vir associada à ideia de que a habitação é um direito, porque este tipo de habitação não pode existir para ninguém. Temos mais de 40 anos de democracia e desde o início desta democracia que se definiu que a habitação é um direito. Não é só um direito quando a falta de condições de umas pessoas põe em causa a saúde de outras. Não pode haver luxo e miséria porta a porta. Habitação não é mercadoria, é um direito.

Parece certo que estamos num momento de transição, mas não sabemos ainda para que futuro.
Não temos de saber. Temos sempre construído a História sem saber em que direcção, muitas vezes em reacção a algo que deixa de ser possível. Acredito que há pessoas que estão a pôr em causa os seus velhos hábitos. Teremos de transformar-nos, porque isto assustou-nos e é bom que nos tenha assustado, para entendermos que a natureza ainda tem poder e que nós podemos ter o poder de queimar a Amazónia, mas não conseguimos lidar com este bichinho que nem vemos. A natureza não são só as árvores, os leões e os elefantes para tirar uma foto. A natureza regenera-se. E nós? Se o ser humano quer mais umas centenas de anos de vida tem de pôr em causa o seu paradigma económico e social. É interessante pensar em como coexistir com os outros animais e plantas, mas também reflectir neste modelo económico que assenta no racismo, na exploração, na habitação como mercadoria pura, nas relações de poder hemisfério norte-hemisfério sul, que vive de conflitos mundiais para extrair. Uma economia global em que as pessoas circulam à toa a toda a hora, com os aviões a subirem e a descerem em low-cost ininterruptamente, o combustível a poluir tudo.

Deste lugar em que estamos agora, em plena pandemia, olha para o futuro e sente-se optimista ou pessimista?
Estamos numa transição e esta era que vamos atravessar agora será um desafio. Não quero pensar que transformação será essa porque me assusta. Quero assumir que é um tempo de transformação e que não nos permitirá ficar quietos. Vamos viver tempos muito polarizados, mas alguma mudança advirá deles e é a mudança que temos de procurar. Há um escrito anarquista que diz que ficamos à procura da luzinha lá ao fundo sem nunca sair do túnel porque, se cavássemos um buraco no túnel, íamos ter medo daquela luz toda. Mas se o agora não nos serve, por que é que haveremos de lutar para ficar com ele? Vamos tentar manter o que temos agora porque lá à frente está o desconhecido? Mesmo que se instalem regimes totalitários, tecnológicos ou económicos, isso não será novo. Já aconteceu antes e sempre houve resistência. Este marasmo, esta ideia feita de que o capitalismo e a globalização são o fim da História, é que não pode continuar. Não digo que o desafio não seja assustador, pela crispação, pela falta de sítios a que nos agarrarmos no meio de tantas vozes e de tantas verdades, mas isso obriga-nos a procurar o nosso centro, espiritual e ideologicamente. Gosto de pensar que há um sítio na História em que não somos pretos e brancos, homens e mulheres, mas em que somos humanos e em que, como humanos, somos como outro bicho qualquer, com as nossas características específicas. Há um caminho tecnológico que nos quer transformar em Deus e há um pensar económico que quer massacrar todas as outras espécies em prol da nossa. Esse é o caminho que seguimos até agora e esse é o caminho que não serve. Esta transformação vai trazer conflito, mas também vai trazer uma mudança de pele.

Esta entrevista pode ser acedida na sua totalidade através da página Documentos deste blogue, clicando na pasta Documentos da Nossa Banda

Fonte: entrevista de Chullage a Lopes (2020)

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