O Dia Mundial das Cidades é comemorado amanhã, 31 de
Outubro.
Francesco Tonucci, autor do livro «A Cidade das
Crianças», que deu origem à rede internacional City of Children, considera que
o acesso das crianças ao espaço público, com autonomia em relação aos adultos,
é uma das formas de participarem nos lugares onde vivem; e considera que isso também
pode melhorar a autonomia dos adultos.
Excertos de uma entrevista que Francesco Tonucci concedeu a
Abel Coentrão, jornalista do «Público»:
A ideia da Cidade das Crianças não é minha.
Em Fano, o meu município, preparava-se, nos anos 90, uma semana dedicada à
infância, durante a qual havia congressos,
exposições, actividades, e que terminava, num domingo, com a cidade a
oferecer-se às crianças, fechando as ruas para que estas pudessem brincar. O
executivo municipal pediu-me que, sendo de Fano, assumisse a direcção
científica do projecto. A contrapartida que exigi foi que aquilo deixasse de
ser um evento, para se tornar em algo contínuo, permanente, de mudança da
cidade, assumindo as crianças como parâmetro. Esse foi o núcleo filosófico da
proposta.
A proposta que eu estava a fazer mudava as regras
do jogo. De um projecto que era “para” as crianças, no qual se faziam muitas
coisas “para” elas, eu pretendia passar a um projecto “com” as crianças e,
“das” crianças. Ou seja, queria que os adultos pudessem aprender algo,
escutando as crianças. Este é o coração do projecto: a participação delas.
Trata-se de uma utopia, pois a cidade nunca será das crianças. Eduardo
Galeano explicava que essa é a função da utopia. Quando te aproximas, ela fica
um pouco mais longe. E a pergunta é: para que serve? Para fazermos caminho,
progredir. Eu sei que nunca conseguiremos, mas que ao movermo-nos nessa
direcção, estamos a fazer uma boa política. A cidade de Pontevedra
é um caso emblemático. Assumiu com uma coerência radical a ideia de devolver a
cidade às pessoas. E o espaço público é o espaço de todos, o que significa que
não pode ser apenas o espaço dos automóveis. E só num espaço devolvido às
pessoas, as crianças podem se movimentar tranquilamente, sair para brincar, ir
à escola sem a companhia de adultos, e vivendo, por isso, experiências de uma
verdadeira cidadania. O acesso ao espaço público é uma das formas de
participação das crianças na vida das cidades. Mas apenas se elas não estiverem
a ser levadas pela mão de um adulto. Neste caso estarão apenas a percorrer a
cidade, a acompanhar alguém, não a vivem como protagonistas. A participação tem
um toque de protagonismo.
Outra forma de participação das crianças é através
das suas palavras, das suas ideias, das suas opiniões. Por detrás disto temos
dois artigos da Convenção dos Direitos da Criança. Neste último caso, o artigo
12, que diz que as crianças têm direito a expressar a sua opinião cada vez que
se tomem decisões que as afectem. E que prossegue, assinalando que essa opinião
tem de ser tida em conta. É um artigo impressionante. Que raramente se cumpre
... Sim. E acredito que quase não se pode cumprir. Nós, os adultos, não temos
um direito deste tipo. Os nossos governantes não se comprometem a consultar-nos
cada vez que se tomam decisões. Consultam-nos a cada cinco anos, quando
terminam o mandato, e nos perguntam se gostamos ou não. E nós confirmamos, ou
elegemos outros. Mas este artigo é muito claro, em relação ao direito das
crianças. Isto implica uma responsabilidade muito grande para os adultos, dado
que quase todas as decisões que tomamos afectam, de alguma maneira, a infância.
Na família, na escola, na cidade. E nós pensamos, por exemplo, nos hospitais
pediátricos, ou nos museus. Temos conselhos de crianças em instituições deste
tipo e é sempre impressionante ver como a participação produz adesão,
identificação, e efeitos positivos. Por exemplo, em departamentos de saúde,
como o internamento em oncologia pediátrica, é muito importante que elas possam
participar. Um amigo meu, especialista nesta área, não tem dúvidas de que isso
favorece a própria terapia. E isso não é óbvio para uma parte do universo da
medicina.
Há pouco tempo, na cidade de Latina, capital de
Lácio, perto de Roma, que está na nossa rede, o conselho de crianças descobriu
que o regulamento da polícia municipal tinha um artigo que proibia a
brincadeira em lugares públicos. As crianças discutiram a questão com o adulto
animador do conselho, dizendo que alguém se teria enganado, pois há um artigo
da Convenção dos Direitos da Criança (CDC) que diz que elas têm direito a
brincar, e não compreendiam que o não pudessem fazer num lugar público.
Escreveram uma carta ao presidente da Câmara, a assinalar o equívoco. O autarca
discutiu a carta com o resto do executivo municipal, respondeu às crianças a
dizer-lhes que tinham razão, propôs uma alteração ao regulamento, que era já
antigo, e o artigo passou a ter uma redacção em que assumem que, respeitando o
artigo 31 da CDC, o município “favorece” a brincadeira em “espaços públicos e
de uso público”, que seriam, neste caso, os espaços privados – como em
condomínios – mas que têm um uso público.
Num congresso sobre a “cidade para brincar: 20-30”,
em que participei, durante dois dias as intervenções passaram, basicamente, por ampliar a oferta de parques infantis,
reconhecer o direito de todas as crianças desta cidade a terem um lugar para
brincar perto de casa, em cada bairro, com jogos, por melhorar estes jogos,
adequando-os a crianças com deficiências. Defendeu-se, também, que estes espaços deveriam ter serviços, como água e
casas de banho. Quando chegou a minha vez, pedi desculpa, porque estava contra
tudo o que tinha ouvido. A minha tese é que uma cidade estará apta para brincar
quando não tivermos que criar mais locais específicos para as crianças estarem.
A cidade apta para brincar é aquela em que uma
criança pode sair de casa sem ser pela mão de um adulto, encontrar amigos na rua
e decidirem, juntos, ao que brincar, onde, e como. E decidir onde o farão faz
parte do jogo. Pensar que brincar é ir todos os dias ao mesmo sítio, aproveitar
os mesmos jogos, alguns deles em solidão, pois só podem ser usados por uma
pessoa de cada vez, e acompanhado por um adulto é algo muito estranho. Que só
poderia ser pensado por alguém que, pobrezinho, não tenha tido a oportunidade
de brincar, quando era criança.
Quase todos os adultos foram crianças, mas quase
ninguém se recorda disso. E os nossos autarcas estão em crise por isso e pedem
a ajuda das crianças, para que elas lhe ofereçam o outro ponto de vista. E eles
comprometem-se a escutá-las e a ter em conta o que dizem, e a pôr em prática
algumas dessas ideias. Não é possível concretizar tudo, mas se não o fizer,
deve justificar, perante aquelas crianças, as suas opções.
O mais interessante é aproveitar estes elementos
que as crianças oferecem para repensar a política. Às vezes as crianças pedem
uma coisa pequena, como no exemplo que dei de Latina. É preciso tornar isso
público, dizer a todos que o regulamento mudou, porque eles tinham a lei do
lado deles. E chegar, no caso, aos condomínios, que gerem espaços privados de
uso público, e convencê-los a mudar os regulamentos desses espaços. Em contrapartida,
pode-se criar uma placa, para pôr nesses lugares, dizendo que respeitam o
artigo 31 da Convenção dos Direitos da Criança. A comunicação é importante.
Vejam os cartazes que existem nos parques, indicando um conjunto de proibições.
O que proponho é que se façam cartazes a dizer: “Convidamos as crianças a
brincar neste lugar!” Ou, melhor ainda: “Convidamos os adultos a não incomodar
as crianças que brincam!”. Gosto deste tipo de coisas porque, seguramente, vão
criar um debate. Os jornalistas vão falar disso. E é perfeito para começarmos a
discutir a cidade. Os pais normalmente querem lugares limpos, as crianças
gostam de rebolar e sujar-se… Como se concilia isto? Num dos múltiplos
encontros que tivemos online, por
causa da pandemia, uma rapariga de Bogotá, Andrea, dizia-me que “Aleijar-se é
muito importante”. Encantam-me estas frases que são genuinamente de crianças,
que não a escutaram de um adulto. Nenhum adulto diz a uma criança: “Vai e
aleija-te, é importante.” Em Itália temos uma estatística impressionante e
vergonhosa. A primeira causa de morte até aos 26 anos são os acidentes de
automóvel e de moto. Do meu ponto de vista, isto é intolerável. E por isso
aprecio Pontevedra, que celebrou dez anos sem qualquer morte nas ruas. Isto é
um tema urgente, para a democracia. E aleijarmo-nos é fundamental para não
morrermos. Porque quem esfolou os joelhos a andar de bicicleta, com alguma
probabilidade saberá mover-se com mais segurança numa motorizada. Eu não
permitiria que se conduzissem motos sem se passar pela experiência da
bicicleta. Nesta, podemos cair muitas vezes. Na mota, às vezes basta cair uma
vez. Perante estas coisas, não podemos continuar a dizer, “sim, entendo”, sem
resolver o problema. Em 1996 a ideia comum era já que a cidade tinha muitos riscos
e perigos. E que para proteger as crianças era preciso fechá-la em casa, na
escola, ou num parque, de preferência com uma cerca em volta. E essa sensação,
parece-me, piorou. Ou não concorda? As crianças italianas e portuguesas sofrem
com isso. Num estudo realizado há uns 15 anos, Itália aparecia em penúltimo
lugar, e Portugal em antepenúltimo, num índice de autonomia das crianças do
ensino básico, dos seis aos 11 anos. No meu país esse índice era de 7%.
Portugal era pouco mais. Isso era impressionante. Na Alemanha 70% das crianças
iam sozinhas para a escola e na Finlândia essa taxa era de 90%. Com climas bem
piores que os nossos. Há quem diga que isso acontece por razões culturais. Mas,
no meu tempo, e há 50 anos, as crianças italianas iam sozinhas para a escola.
Brincavam na rua. Foi uma mudança rápida. E se formos ver os dados do
Ministério do Interior, nessa altura as cidades eram mais perigosas do que
hoje, pelo menos em Itália. Não sei como seria em Portugal.
Na verdade, podemos dizer que a cidade de hoje é
mais segura, mas o medo é maior. E aqui abre-se outro tema muito interessante,
do ponto de vista social. Isto significa que o medo perdeu a relação com os
perigos, que estão desfasados. Isto é muito grave, tendo em conta que ter medo
é um sentimento fundamental para a defesa pessoal, mas em excesso chega a
provocar uma paralisia. E hoje é assim. Tenho-me perguntado como chegámos até
aqui. Nós saíamos à rua para brincar não porque os nossos pais fossem avançados
para o seu tempo mas porque não havia remédio. Os meus pais tinham medo e
diziam-me para ter cuidado, porque já havia carros e outros riscos. Mas isso
era independente do facto de eu sair ou não, porque isso tinha mesmo que
acontecer. Não só porque eu o desejava, mas porque a casa era demasiado pequena
e humilde para a minha mãe aguentar com quatro rapazes, numa divisão com uma
mesa. Ficaria impedida de cumprir as suas tarefas. É uma história comum a
muitas famílias, em Portugal ... O estranho disto é que as coisas mudaram ao
mesmo tempo que os pais mais jovens têm mais conhecimento, e participam, mesmo
os homens, muito mais na vida da família que a geração do meu pai, ou mesmo a
minha. O que eu imagino é que, um dia, um pai teve a ideia, partilhada com
todos os outros pais, que a sua filha ou filho não podiam sair sozinhos. Que
tinham de os acompanhar. E, ao abrir a porta, faz a pergunta dramática: “Onde o
levarei?” Estas duas questões foram o motor de uma produção comercial, do
mercado, por um lado, e de um interesse político, por outro, como acontece com
as perguntas que correspondem a necessidades. E nalgum momento pareceu a todos
que isto era muito natural. E agora é muito complicado pedir às crianças que
participem num processo de planeamento e pedir-lhes que imaginem lugares para
brincar. Eu digo sempre: “Não o façam!”. Porque vão sempre desenhar baloiços e
escorregas. Estes são os estereótipos que desenvolveram.
O alcaide de Pontevedra, Miguel Anxo Lores, é
médico. E dizia-me: “Quando analisei a velocidade do trânsito, dei-me conta de
que a 50 km/h morre um em cada dois peões atropelados. E a 30 km/h a
percentagem baixa para um em cada 20. Para mim, isso é razão suficiente para
mudar. Não me interessa mais nada. E toda a cidade passou a ter os 30 km/h como
limite. Por outro lado, ele diz-me sempre: “A mim, não me interessa fazer
receita com multas por excesso de velocidade, se isso pode matar alguém. A mim,
o que me interessa é que na minha cidade não seja possível matar uma pessoa na
rua.” A questão é a estrutura da cidade, não a norma. Quando ele fala da nossa
relação, refere sempre: “Eu escutei o que dizias, e convenceste-me!”. Ele
ouviu-me numa conferência em que eu desconhecia que, na assistência, estava o
autarca, e desse dia recorda uma outra parte da minha intervenção. Disse, como
sempre digo, que quando apresento o meu projecto a autarcas, nenhum me diz que
não gosta, ou que não lhe interessa. Dizem-me sempre que ficam encantados, mas
acrescentam: “dê-me um ano ou dois para eu resolver o problema do tráfego
automóvel, e depois falamos”. Claro que a situação do tráfego não se resolve, e
não falamos mais. Mexer com a mobilidade em automóvel não é fácil. Gera debates
infindáveis ...
Às crianças, não lhes interessa nada uma cidade só
para eles. Quando fazem propostas, nunca propõem coisas infantis. Para elas é
evidente que a cidade tem que ser adequada para os seus irmãos mais pequenos,
para os seus pais, avós, os idosos em geral, os cães e as plantas. Têm uma
ideia de cidade muito ecológica e muito democrática. Só nós, os adultos, fomos
capazes de pensar uma cidade só para nós, adultos e varões. Uma cidade para
gente em idade activa ... Sim, a questão do género não se resolveu ainda, mas
melhorou bastante, porque as mulheres lutaram muito. Mas ainda têm dificuldade
em mover-se pela cidade com boas condições. A pandemia voltou a mostrar-nos
essa fractura, no emprego por exemplo. Em Itália, pelo menos, uma grande
percentagem dos que perderam emprego por terem de ficar em casa, para cuidar
das crianças, eram mulheres.
Durante o isolamento da pandemia escrevi um livro
em que reflectia sobre como a escola perdeu uma grande ocasião para mudar,
durante esta pandemia. Chama-se “Pode um Vírus Mudar a Escola?”. E a resposta à
pergunta é não. E é pena, porque a situação era tão intensa, a crise era tão
forte, que quem quisesse poderia ter mudado a escola, e ninguém se oporia. Mas
o que a escola fez, em Itália e noutros países, foi aproveitar as tecnologias
para não mudar nada. E aproveitou até para se libertar, quase, de tudo o que
era um distúrbio, uma moléstia, pois nem teve de organizar o recreio, deixou de
ter as birras entre crianças. O ecrã transformou-se num púlpito onde o docente
estava perante o seu aluno, para dar aulas e ditar deveres de casa. Isto
fracassou. Se a escola for capaz de fazer um mínimo de auto-análise verá que
fracassou. As crianças não gostaram nada disto e os estudantes mais velhos chegaram
a protestar contra isto. Nos
conselhos de crianças da rede de Cidades das Crianças, nós aproveitamos os mesmos ecrãs para escutarmos os mais
novos. Estes ecrãs não são unidireccionais. Podem ser púlpitos, mas também
podem ser praças, lugares de encontro, de intercâmbio, uma oportunidade para os
professores darem a palavra aos seus alunos, ver como estavam a lidar com a
pandemia, e abandonar os programas.
A questão dramática da escola é que as crianças se
aborrecem. O que é grave é que ninguém se preocupa, ou se espante, com o facto
de elas se aborrecerem. Porque os seus pais, na verdade, também se aborreceram.
E os professores igualmente. Parece normal. Mas é evidente que, se uma pessoa
se aborrece, não aprende. A aprendizagem exige interesse, participação,
insisto.
Fontes: entrevista de Francesco Tonucci a Abel Coentrão no jornal
«Público» (2021)