segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

[0023] Uma outra aprendizagem: os alunos ocupam mil escolas no Brasil

Testemunhou hoje a jornalista Alexandra Lucas Coelho, em artigo no jornal «Público»,
«# Ocupa Pedro II.
Mil escolas ocupadas no Brasil. Dá trabalho ocupar uma escola, um trabalho inédito. Uma geração inédita para um tempo inédito»:

Alexandra Lucas Coelho


1. O moreno Miguel, filho de Mestre Manel, estende a mão para eu entrar na roda. Veio da favela da Rocinha com os rapazes, o tambor, o berimbau, as camisetas que dizem Acorda Capoeira. Lá na favela, é um meio de desviar os meninos do tráfico. Aqui, faz voar os meninos de classe média do Rio de Janeiro, sobretudo brancos, sobretudo de classe média, sobre o chão do colégio público mais antigo e mais famoso do Brasil, fundado há 180 anos pelo imperador Pedro II. Nestes últimos dias do pior ano da vida deles, ocupam a escola há mais de um mês. Votaram por isso, organizaram-se em nove comissões, dormem por turnos, têm oficinas, filmes, palestras, teatro, esta tarde, capoeira. Todos descalços no chão da quadra desportiva do colégio, com os seus pés macios, os seus pulsos delicados, batem palmas, ecoam o canto dos negros trazidos para a colonização do Brasil: Lêlêlê lêlêlê lêlêlê lalala. E, pela primeira vez, um a um, lançam-se no ar.
2. Brasil fora, há umas mil escolas ocupadas por estudantes em luta contra a anunciada reforma do ensino e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que congela gastos públicos por 20 anos, incluindo educação. Dá trabalho ocupar uma escola, trabalho inédito, mais fácil dormir na praia, frente a algum ecrã. Mas esta geração é inédita mesmo. Gente inédita para um tempo inédito. Trabalho diário e frustração diária. Não é mole, não.
3. Na tarde da capoeira no Pedro II conheci estudantes dos 12 aos 19 anos. O colégio tem 12 campus no Rio de Janeiro, e uns seis estão ocupados. Fui sem aviso ao do Humaitá, na Zona Sul. Cartazes nas grades, portão fechado, mas acenando para a entrada os estudantes do lado de lá do segundo gradeamento gritam que é só puxar o fecho. O gradeamento é para proteger a ocupação enquanto quem vem se identifica. Não me pedem um cartão, só o nome, que anotam num grande caderno. Seguindo pelo pátio-corredor central, palavras de ordem pintadas, escritas, coladas (Sua saúde mental vale mais que suas notas; Sem Temer foi sempre o nosso lema). Numa parede estão afixadas as nove comissões (Comida, Limpeza, Saúde, Actividades, Segurança, Comunicação, Pais, Infraestruturas, Tesouraria), com as tarefas mais imediatas, e o nome dos estudantes responsáveis. Avançando até aos fundos, há uma horta do lado esquerdo, vários meninos lá dentro, e no fim de tudo a quadra onde já vibra o berimbau da capoeira. Dezenas na roda.
4. Quando a roda termina, sento-me com um dos estudantes mais velhos nos degraus da bancada de cimento, aos pés da frase: NADA DEVE PARECER IMPOSSÍVEL DE MUDAR. Qualquer coisa nele lembra um muito jovem Caetano Veloso chegado da Bahia, talvez o corpo esguio, talvez a cor morena, talvez a barbicha, os caracóis, a voz, aquele jeito lento, baiano de falar coisas tremendas com um vagar. Ele tem 19 anos e um brinco balançando na orelha esquerda, mora em Vila Isabel, bairro carioca da Zona Norte onde há cem anos morava Noel Rosa, um dos maiores sambistas da história. É difícil virar estudante do mais célebre colégio público, tem sorteio e tem prova, este finalista entrou por prova, e a primeira coisa que ele me diz não é uma declaração de triunfo, nem de estratégia, mas como estas quatro semanas de ocupação balançaram tanto a cabeça dele que por vezes vira um “distúrbio de personalidade”. De repente, o mundo ficou do avesso. E não é fácil, ele repete, estar aqui junto, fazer coisa junto, não é fácil, ele repete, a gente tem problemas. Uma pequena história da humanidade, não? Esses meninos não estão aqui posando.
5. Poucos aqui são da Zona Norte, como ele. Ele pega dois ônibus para chegar, uma hora até à escola. Nas primeiras semanas da ocupação ficou directo. «Sempre tem um grupo dormindo, no mínimo umas 25 pessoas.» Nas salas de aula do andar de cima, ele aponta as janelas, pede desculpa por não me levar lá, combinaram que iam preservar o dormitório dos olhares exteriores. Cada um trouxe o que precisava para dormir. Há duche, mas só água fria. E há sempre um grupo acordado, vigiando. «Tem um ponto em que a gente fica um pouco desgastado, com necessidade da família.» Muitos pais vêm apoiar, os pais dele também vieram, todos os dias há pais aqui, e professores. Os professores estão em greve, já estavam. É uma luta com várias frentes, a que se juntam em alguns momentos os mais novos. Mas na ocupação, dormindo, eles têm entre 15 e 19 anos. «É muita gente diferente. Tem choque o tempo todo, formam-se grupos, diferentes posicionamentos. A gente tem que buscar se entender.» Pausa, e insiste: «A gente tem dificuldades.» E, de alguma maneira, esta fraqueza é parte do novo, e genuíno.
6. Mas tem que ter essa PEC, tem que ter controle de gastos, diz uma amiga com quem almoço no dia seguinte, que sabe tudo dos podres das finanças, do Brasil em geral. Esses meninos são incríveis, mas onde eles querem chegar?, ela pergunta. Qual o objectivo deles? E, de alguma maneira, estas perguntas já não são deste tempo, ou desta geração. Não tenho uma resposta para o que a minha amiga pergunta. Penso que talvez eles dissessem que não há uma só resposta, ou que mais do que «chegar» eles querem estar acordados, agora, aqui. Só sei que eles estão lutando sabendo bem como é difícil. Como todos os dias no Brasil tem derrota.
7. Nos últimos anos, o Pedro II passou a ter um reitor eleito por professores, funcionários e estudantes (um terço de votos para cada), Oscar Halac. Quando o colégio aboliu a distinção de uniforme consoante o género e foi criticado por isso, o reitor disse que «a escola não deve estar desvinculada de seu tempo e momento histórico». Halav vê o actual movimento de estudantes no Brasil como «uma evolução do processo sociológico», em que «o país começa se auto conhecer, a ter um processo de uma nação democrática». Declarou-se contra qualquer intervenção policial na ocupação, e desvalorizou boatos sobre drogas e relações sexuais dentro do colégio, considerando que isso «só contribui para um maior desentendimento». Rematou com uma citação de Gonzaguinha: «Eu fico com a pureza da resposta das crianças. É a vida, é bonita.»
8. «A escola tradicional não oferece muito pra gente, oferece uma parada enrijecida», diz o meu quase baiano de Vila Isabel, levando-me ao pátio onde está a passar um filme, à sala da limpeza cheia de detergentes e esfregões doados. «A gente aqui reinventa o espaço. Mas não é fácil desenvolver um projecto político pedagógico alternativo. O ideal não é consensual.» Oficialmente não há uma liderança, simplesmente uns dedicam-se mais à ocupação. No início tomavam decisões em assembleia, mas começaram a sentir que isso também era algo velho. Se o colégio tinha uma tradição de grémio (associação de estudantes) ligado ao PSOL (partido de esquerda), agora houve um corte com a partidarização. O meu interlocutor é dos mais activos, está em duas comissões, mas nem eu pergunto para onde eles vão nem ele responde. «Só sei que vou sair daqui com um aprendizado para a vida. Recebo muita informação, a nossa cabeça fica muito cheia, é uma mudança radical, quebrar ociosidade, improdutividade, o ficar encostado. Aqui, a gente está-se propondo fazer coisas.» Coisas políticas fora de partidos. Ele toca tuba, até à ocupação tocava em shows, na rua, mas agora a música está em pausa, tal como a ideia da faculdade. Faculdade, próximo ano: visto daqui, de repente isso é muito remoto.”


Esta pode ser uma oferta dos jovens à escola tradicional …

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