Testemunhou hoje a jornalista Alexandra
Lucas Coelho, em artigo no jornal «Público»,
«# Ocupa Pedro II.
Mil escolas ocupadas no Brasil. Dá trabalho ocupar uma escola, um trabalho
inédito. Uma geração inédita para um tempo inédito»:
“1. O moreno
Miguel, filho de Mestre Manel, estende a mão para eu entrar na roda. Veio da
favela da Rocinha com os rapazes, o tambor, o berimbau, as camisetas que dizem Acorda Capoeira. Lá na favela, é
um meio de desviar os meninos do tráfico. Aqui, faz voar os meninos de classe
média do Rio de Janeiro, sobretudo brancos, sobretudo de classe média, sobre o
chão do colégio público mais antigo e mais famoso do Brasil, fundado há 180
anos pelo imperador Pedro II. Nestes últimos dias do pior ano da vida deles,
ocupam a escola há mais de um mês. Votaram por isso, organizaram-se em nove
comissões, dormem por turnos, têm oficinas, filmes, palestras, teatro, esta
tarde, capoeira. Todos descalços no chão da quadra desportiva do colégio, com
os seus pés macios, os seus pulsos delicados, batem palmas, ecoam o canto dos
negros trazidos para a colonização do Brasil:
Lêlêlê lêlêlê lêlêlê lalala. E, pela primeira vez, um a um,
lançam-se no ar.
2. Brasil
fora, há umas mil escolas ocupadas por estudantes em luta contra a anunciada
reforma do ensino e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que congela
gastos públicos por 20 anos, incluindo educação. Dá trabalho ocupar uma escola,
trabalho inédito, mais fácil dormir na praia, frente a algum ecrã. Mas esta
geração é inédita mesmo. Gente inédita para um tempo inédito. Trabalho diário e
frustração diária. Não é mole, não.
3. Na tarde
da capoeira no Pedro II conheci estudantes dos 12 aos 19 anos. O colégio tem 12
campus no Rio de Janeiro, e uns seis estão ocupados. Fui sem aviso ao do
Humaitá, na Zona Sul. Cartazes nas grades, portão fechado, mas acenando para a
entrada os estudantes do lado de lá do segundo gradeamento gritam que é só
puxar o fecho. O gradeamento é para proteger a ocupação enquanto quem vem se
identifica. Não me pedem um cartão, só o nome, que anotam num grande caderno.
Seguindo pelo pátio-corredor central, palavras de ordem pintadas, escritas,
coladas (Sua saúde mental vale mais que suas notas; Sem Temer foi sempre o nosso lema).
Numa parede estão afixadas as nove comissões (Comida, Limpeza, Saúde,
Actividades, Segurança, Comunicação, Pais, Infraestruturas, Tesouraria), com as
tarefas mais imediatas, e o nome dos estudantes responsáveis. Avançando até aos
fundos, há uma horta do lado esquerdo, vários meninos lá dentro, e no fim de
tudo a quadra onde já vibra o berimbau da capoeira. Dezenas na roda.
4. Quando a
roda termina, sento-me com um dos estudantes mais velhos nos degraus da bancada
de cimento, aos pés da frase: NADA
DEVE PARECER IMPOSSÍVEL DE MUDAR. Qualquer coisa nele lembra um muito
jovem Caetano Veloso chegado da Bahia, talvez o corpo esguio, talvez a cor
morena, talvez a barbicha, os caracóis, a voz, aquele jeito lento, baiano de
falar coisas tremendas com um vagar. Ele tem 19 anos e um brinco balançando na
orelha esquerda, mora em Vila Isabel, bairro carioca da Zona Norte onde há cem
anos morava Noel Rosa, um dos maiores sambistas da história. É difícil virar
estudante do mais célebre colégio público, tem sorteio e tem prova, este
finalista entrou por prova, e a primeira coisa que ele me diz não é uma declaração
de triunfo, nem de estratégia, mas como estas quatro semanas de ocupação
balançaram tanto a cabeça dele que por vezes vira um “distúrbio de
personalidade”. De repente, o mundo ficou do avesso. E não é fácil, ele repete,
estar aqui junto, fazer coisa junto, não é fácil, ele repete, a gente tem
problemas. Uma pequena história da humanidade, não? Esses meninos não estão
aqui posando.
5. Poucos
aqui são da Zona Norte, como ele. Ele pega dois ônibus para chegar, uma hora
até à escola. Nas primeiras semanas da ocupação ficou directo. «Sempre tem um
grupo dormindo, no mínimo umas 25 pessoas.» Nas salas de aula do andar de cima,
ele aponta as janelas, pede desculpa por não me levar lá, combinaram que iam
preservar o dormitório dos olhares exteriores. Cada um trouxe o que precisava
para dormir. Há duche, mas só água fria. E há sempre um grupo acordado,
vigiando. «Tem um ponto em que a gente fica um pouco desgastado, com
necessidade da família.» Muitos pais vêm apoiar, os pais dele também vieram,
todos os dias há pais aqui, e professores. Os professores estão em greve, já
estavam. É uma luta com várias frentes, a que se juntam em alguns momentos os
mais novos. Mas na ocupação, dormindo, eles têm entre 15 e 19 anos. «É muita
gente diferente. Tem choque o tempo todo, formam-se grupos, diferentes
posicionamentos. A gente tem que buscar se entender.» Pausa, e insiste: «A
gente tem dificuldades.» E, de alguma maneira, esta fraqueza é parte do novo, e
genuíno.
6.
Mas tem que ter essa PEC, tem que ter
controle de gastos, diz uma amiga com quem almoço no dia seguinte, que sabe
tudo dos podres das finanças, do Brasil em geral. Esses meninos são incríveis,
mas onde eles querem chegar?, ela pergunta. Qual o objectivo deles? E, de
alguma maneira, estas perguntas já não são deste tempo, ou desta geração. Não
tenho uma resposta para o que a minha amiga pergunta. Penso que talvez eles
dissessem que não há uma só resposta, ou que mais do que «chegar» eles querem
estar acordados, agora, aqui. Só sei que eles estão lutando sabendo bem como é
difícil. Como todos os dias no Brasil tem derrota.
7.
Nos últimos anos, o Pedro II passou a
ter um reitor eleito por professores, funcionários e estudantes (um terço de
votos para cada), Oscar Halac. Quando o colégio aboliu a distinção de uniforme
consoante o género e foi criticado por isso, o reitor disse que «a escola não
deve estar desvinculada de seu tempo e momento histórico». Halav vê o actual
movimento de estudantes no Brasil como «uma evolução do processo sociológico»,
em que «o país começa se auto conhecer, a ter um processo de uma nação
democrática». Declarou-se contra qualquer intervenção policial na ocupação, e
desvalorizou boatos sobre drogas e relações sexuais dentro do colégio,
considerando que isso «só contribui para um maior desentendimento». Rematou com
uma citação de Gonzaguinha: «Eu fico com a pureza da resposta das crianças. É a
vida, é bonita.»
8.
«A escola tradicional não oferece muito
pra gente, oferece uma parada enrijecida», diz o meu quase baiano de Vila
Isabel, levando-me ao pátio onde está a passar um filme, à sala da limpeza
cheia de detergentes e esfregões doados. «A gente aqui reinventa o espaço. Mas
não é fácil desenvolver um projecto político pedagógico alternativo. O ideal
não é consensual.» Oficialmente não há uma liderança, simplesmente uns
dedicam-se mais à ocupação. No início tomavam decisões em assembleia, mas
começaram a sentir que isso também era algo velho. Se o colégio tinha uma
tradição de grémio (associação de estudantes) ligado ao PSOL (partido de
esquerda), agora houve um corte com a partidarização. O meu interlocutor é dos
mais activos, está em duas comissões, mas nem eu pergunto para onde eles vão nem
ele responde. «Só sei que vou sair daqui com um aprendizado para a vida. Recebo
muita informação, a nossa cabeça fica muito cheia, é uma mudança radical,
quebrar ociosidade, improdutividade, o ficar encostado. Aqui, a gente está-se
propondo fazer coisas.» Coisas políticas fora de partidos. Ele toca tuba, até à
ocupação tocava em shows, na rua, mas agora a música está em pausa, tal
como a ideia da faculdade. Faculdade, próximo ano: visto daqui, de repente isso
é muito remoto.”
Esta pode
ser uma oferta dos jovens à escola tradicional …
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