Este blogue tem como objecto
a Educação; e o objecto da Educação é o Património.
O Património é o que legamos
às próximas gerações, e que elas aprendem a conhecer e aprendem a questionar -
para o manter, para o ampliar, para o transformar.
A situação que já vivíamos,
e especialmente a que agora estamos a viver, interroga tudo quanto pode ser
legado entre gerações. E a interrogação é uma parte decisiva do Património.
José Reis dirigiu-se-nos assim:
Falemos
de economia política. Falemos da política como deliberação coletiva. Soframos e
decidamos. Portugal é uma periferia, mas uma periferia persistente.
No Observatório sobre Crises e
Alternativas do Centro de Estudos Sociais, temos vindo a trabalhar na
preparação de um livro que designámos Vulnerabilidades: Retrato de um país frágil
(uso quase a mesma expressão para título deste artigo). Achávamos que Portugal
estava a ser sujeito a processos relevantes de geração de vulnerabilidades e
que estas se podiam identificar em diferentes escalas e dimensões. Era pelas
nossas mãos, em vários planos, que tal estava a acontecer, visto que as
vulnerabilidades são geradas ou induzidas por processos institucionais e
políticos, isto é, por deliberações e formas de organização que juntam novas
fragilidades à condição necessariamente incerta e contingente da vida
individual e coletiva.
Provavelmente este livro era, na
análise a que procedíamos, sobre o passado. O passado cuja aceleração se deu
nos anos de 1990, quando os capitalismos foram tomados pelo capital financeiro,
que passou a comandar intensamente a vida coletiva, incluindo os Estados. Ou o
nosso passado mais recente, o que acabou há dias, quando bastava olhar para
além do orçamento, do PIB ou do volume de emprego para tentarmos compreender o
que de mais profundo a austeridade nos fez. Não pretendia ser um livro
profético nem somos prosélitos. As razões que pudéssemos ter nos alertas que
queríamos lançar doem-nos hoje profundamente, quando a vida nos foi tomada de
assalto de uma forma disruptiva inimaginável.
Há
coisas que custa invocar quando a vida está tão convulsa. Dizem-me, não
confirmei, que há prateleiras cheias de meios-sapatos nas nossas zonas onde
esta indústria se localiza. Sempre foi estúpido montar sapatos onde antes se
sabia fazer tudo, mandando agora vir de muito longe algumas partes que aqui se
produziam. Há 35 anos estudei a indústria metalomecânica de Águeda e a das
bicicletas em particular. Tratava-se de um caso notável de um «sistema produtivo
local»: aberto, mas autocentrado em culturas técnicas e na organização, no
próprio território, das inter-relações essenciais, que articulavam vários
setores e ramos de atividade. Dez anos depois voltei lá. Nas estatísticas já
tinha visto que havia bastante trabalho feminino: ótimo, fosse a razão boa. Mas
a razão era outra: já não se produziam bicicletas, montavam-se bicicletas. É
hoje claro para todos que, para além de estúpido, isto é perigoso. Estes são
exemplos singelos. Poupo os outros. Tanto os ainda mais volumosos, como aqueles
que poupo por pudor. Estes são tempos de falar serenamente, para que se ouça
melhor.
Entre
o que subitamente mudou há duas variáveis essenciais: tempo e espaço.
O tempo, essa variável com que tentamos compreender a evolução, as mudanças, os
ciclos, isto é, os avanços e os retornos, mudou radicalmente. Tornou-se
vertiginoso. Revolveu a vida, em vez de apenas a conduzir. O espaço foi-nos
devolvido, reposto nas nossas mãos, depois de nos ter sido retirado em nome de
cosmopolitismos superficiais, globalizações insensatas e mobilidades quase
patéticas. Estragado, mas devolvido. Temos que pegar em ambos e usá-los. Para
isso, talvez ajude pensar no que se segue.
Há poderes que não se entregam a quem
não usa as mesmas regras ou os mesmos objetivos. Há coisas que
são do Estado e dos Estados e elas só fazem sentido nos seus próprios contextos
para serem legítimas e servirem para agir, não para servir senhores. Podem
partilhar-se, pode até ser muito útil que haja espaços transnacionais de
formação de poder. Claro que a União Europeia é um deles. Se for outra. Feita
agora e por todos. Eu nunca fui capaz de pensar que a UE é intrinsecamente má,
embora ache que ela foi o mais poderoso mecanismo de transferência de poder
para o capitalismo iníquo da finança e dos mercados, protegendo-os e
desprotegendo quem a podia legitimar. Não deixarei de pensar assim.
Há ativos cuja transação não se promove
como quem leiloa coisas comuns. Sim,
falo de quem presta serviços coletivos e de interesse geral – não basta
regulá-los, é preciso possuí-los coletivamente. Sim, falo do que estrutura a
produção. Falo do imobiliário. E falo, enfim, do próprio território, das
cidades que se esvaziam para entrarem novos utilizadores, do território de
dentro do país, que se esvazia das pessoas que vão servir aqueles que se
concentram nos espaços que lhes oferecemos.
Há relações que têm de ser desenvolvidas
num quadro preciso, fiável e articulado.
Não sob o ímpeto de transações sem lugar nem rosto. Para que o mundo se organize
todo assim, e não como se fosse plano. Não há economia sem quem a realiza nem
sem aqueles a quem ela se destina, no momento da repartição e da geração de
bem-estar. A economia usa os mercados, não é os mercados.
Uma economia é um sistema de produção e de
provisão de bem-estar. Não sendo uma
simples plataforma de transações, a economia mede-se pelo valor que cria, pela
estrutura produtiva que adota, pelas capacidades que desenvolve, pelo nível de
autossuficiência que garante, pela dependência face ao exterior que evita. É
sujeito e objeto da economia política. Deve haver planeamento, intervenção e
organização públicas para satisfazer necessidades e servir a comunidade. É um
lugar para fazer e para aprender. Não para se perder nas linhas abstratas de um
mapa sem territórios. Aprendemos que é possível parar. Aprendamos que é
possível e necessário decidir em nome do povo!
Lugares são sítios de vida, não apenas
pontos de passagem. Uma vez,
compreendi (isto nunca mais me saiu da cabeça e lembro-me agora a toda a hora)
que certos tipos de cidades podem transformar-se em espaços ocupados por teias
de aranha, se tiverem sido feitas não para a vida, mas para a vertigem
relacional. Basta que um vento mau sopre. (Explico-me para ser mais claro:
aconteceu passar no Dubai, lugar que pouco me importa, mas fiquei 24 horas para
ver com os meus olhos o que imaginava; atravessei a cidade e ganhei esta ideia
que me passou a acompanhar.)
Sim,
vamos discutir muitas coisas, umas velhas, outras novas. Não sabemos se o vamos
fazer bem ou mal. Falaremos em primeiro lugar de poder, isto é, de capacidades
para deliberar. Falaremos do contexto em que queremos exercer esse mando e das
finalidades que lhe atribuímos. Falaremos da finalidade da vida.
Vamos
emocionar-nos profundamente, verter lágrimas de tristeza por vítimas, de
alegria por heróis, reconhecer-nos em erros, uns evitáveis, outros não, e em
desempenhos notáveis. Por favor, não percamos este tempo. Falemos de economia
política. Falemos da política como deliberação coletiva. Soframos e decidamos. Portugal
é uma periferia, mas uma periferia persistente.
Fonte: artigo
de opinião de José Reis no jornal Público (2020), tendo os espaçamentos entre
parágrafos e os negritos sido acrescentados pelo responsável por este blogue