Manuel de Sousa Camilo publicou recentemente um
livro com histórias da antiga Costa da Caparica:
Excerto de uma dessas memórias, intitulada “Encontros
«Norte – Sul»”:
“Ano
de 1939. A Escola Primária da Costa de Caparica depois da época de exames do 1º
e 2º graus, equivalentes à 3ª e 4ª classes de instrução primária, recebeu
instruções superiores de que, no seguinte ano lectivo, por razões inesperadas
não poderia leccionar e levar a exame alunos de 2º grau – 4ª classe.
Nesse ano
de 39, dez ou doze garotos tinham terminado a classe com aprovação, após exame
efectuado na Escola da Trafaria. Automaticamente deveriam transitar para a 4ª
classe.
As promessas
do Estado Novo, após a Constituição de 1933, e os seus efeitos, resumiam-se no
que à Costa diz respeito, à afixação na escola de alguns cartazes
propagandísticos, tais como:
Para
cada criança um livro! …
Para cada
português uma enxada!
Para cada
família um lar!
Deus,
Pátria, Família! etc etc.
Estes
cartazes, e quejandos, estavam afixados no interior de um pavilhão de madeira,
a que chamavam Escola. Neste dia eram obrigatoriamente lidos por quatro garotos
que acabavam de ser castigados por se terem atrasado na chegada às aulas.
Nestas, com início às nove da manhã, a D. Olímpia registou a entrada dos quatro
garotos já depois das dez.
O Mário
e o José Henriques, olhos fixos nos cartazes, tentavam descontrair-se, ao mesmo
tempo que estendiam as mãos na direcção da «menina dos cinco olhos», assim era
conhecida a palmatória, com que eram aplicados os castigos, embora de maneira
suave na forma como o fazia a competente professora.
O Joaquim,
irmão do José Henriques, e o Manuel do Evandro mais conhecido por «Peão», entre
os restantes condiscípulos, receberam como castigo, para além da leitura dos
cartazes, o uso de umas «orelhas de burro» enfiadas na cabeça e respectiva
exposição à janela da escola.
Os castigos
eram consequência de um acordo feito na véspera, entre os do «Sul» e os do
«Norte», para jogarem uma «pelada» junto ao prédio do Costa Rodrigues, a alguns
metros da escola. O início seria um pouco antes das oito, deveria terminar
antes das nove, a tempo de entrada nas aulas.
O Ti
«Joaquim do Boi» estranhara que os filhos, José Henriques e Joaquim tivessem
saído de casa tão cedo, cerca das sete e meia da manhã. Ti Joaquim vivia e
trabalhava na Abegoaria, cuidava da carroça e do boi que a puxava, quase
sempre, de forma pachorrenta, pelas ruas da Costa onde procedia à recolha do
lixo urbano.
- Pra
onde vão hoje tão cedo? Nem ajudam a atrelar o boi!
- A
senhora professora vai hoje fazer uma prova; respondeu o José Henriques e
mandou-nos ir mais cedo. - Confirmou o Joaquim.
Estes dois
irmãos diferiam bastante um do outro. O José Henriques tinha nove anos,
enquanto o Joaquim já fizera onze; era mais seco e franzino o mais novo,
enquanto o mais velho, de compleição física mais forte, tirava partido desse
facto no relacionamento com o irmão, como entre os colegas de escola em que
alguns o temiam.
Quando
ambos chegaram às imediações do prédio do Costa Henriques já as equipas estavam
constituídas. Foi com dificuldade que foram aceites, porque faziam parte do
«Sul» e os do «Norte» só tinham disponível o «Peão» como suplente.
Aqui começaram
as primeiras complicações, porque o Joaquim impôs como condição primeira que
ele e o irmão teriam de jogar, quanto ao Mário, dono da bola, jogaria na
primeira parte pelo «Sul» e depois do intervalo, pelo «Norte».
O jogo
começou depois das oito, e a esta hora já na rua, o Ti Joaquim percorria as
ruas da Costa, nas quais o lixo era muito reduzido: não havia embalagens de
cartão, nem latas de cerveja ou refrigerante, nem pacotes vazios de leite,
porque o mesmo era servido de porta em porta em bilhas invioláveis, e, não raro
se cruzavam na mesma rua, a Ti Sofia que vendia leite, o Ti «Joaquim do Boi», e
o Gerardo padeiro que distribuía pão por diversos clientes.
(…).
Entretanto,
no improvisado campo entre a praia e o prédio do Costa Henriques o jogo
terminara às oito e quarenta e cinco. Num lance mais viril, o corpulento
Joaquim «atropelou» o guarda-redes do «Norte», derrubou-o e marcou o um a zero
que não chegou a ser homologado, porque, mais uma vez a estalada e o murro
puseram fim ao encontro, rematado à pedrada, entre os contendores.
Alguns
garotos, quando as pedras começaram a cair, correram a caminho da escola;
estava próximo a hora de entrada. A refrega continuou com os restantes,
abrigados atrás de um muro, trocando pedradas entre si. Eis que, o Joaquim com
a pontaria com que «David venceu Golias» e num último arremesso atingiu a
cabeça do Mário, pertencente à equipa do «Norte», mas colega de carteira do José
Henriques, participante pelo «Sul».
O «Peão»,
ao ver que o Mário sangrava, ofereceu-se para o acompanhar, por solidariedade,
mesmo sendo «nortista», enquanto, o José Henriques, «sulista», solidário com o
Mário e o Joaquim responsável pelo ocorrido, decidiram, por unanimidade, irem
todos à Farmácia Higiénica, onde o solícito Aurélio tratou e suturou o
atingido.
Eram
dez horas e cinco minutos da manhã quando os quatro miúdos entraram na escola,
e todos ao mesmo tempo, olharam para o relógio redondo, de madeira escura,
afixado na parede, detrás da D. Olímpia, e onde os ponteiros eram implacáveis.
Nas restantes
carteiras da escola diluía-se a rivalidade «Norte – Sul». Os alunos ali
sentados estavam mais interessados nos Pontos Cardeais que os livros ensinavam,
e para mais na hora do recreio, novos encontros iriam ser combinados, desta
vez, na praia no baixa-mar onde ainda não existiam pedras: só areia!
De facto,
depois do cumprimento dos castigos e já sentados nas carteiras, os quatro
amigos assim como os demais, aproveitando alguma distracção da D. Olímpia,
conseguiram por sinais combinar novo encontro para a tarde.
No recreio
seguinte, por sugestão do Fernando «Pinguinhas», foi «convocada» uma reunião
para discussão de propostas no sentido de terminar definitivamente com as
desinteligências. Também ficou assente que antes do jogo se iria criar um
«simulacro de estatutos».
Nessa magna
assembleia sem mesa nem presidente foi deliberado e passamos a lavrar:
Artº
1º - Por unanimidade foi decidido que os encontros «Norte – Sul», quaisquer que
sejam as circunstâncias, devem continuar só na praia, porque não há pedras à
mão.
Artº 2º
- Não haverá árbitro: as faltas, os livres e os penaltis, assim como os golos
serão homologados de comum acordo.
Parágrafo
1º - Não haverá marcações de campo: as bolas fora, os locais das faltas e as
decisões se, dentro ou fora da grande área para efeito de marcação de penalti,
será feito por cálculo.
Artº 3º
- Os jogos não poderão terminar empatados, e no caso de dúvidas para apuramento
do vencedor só podem ser utilizadas as mãos para os murros ou «latadas» e é
expressamente proibido o uso de cabeçadas.
Artº 4º
- No caso de entradas mais duras sobre o adversário, o prevaricador será
expulso pelos demais, aos empurrões em caso de resistência.
Artº 5º
- Por agressão ao adversário ou a elementos da própria equipa, será «irradiado»
até ao próximo jogo.
Artº 6º
- Se o agressor ou o faltoso for o dono da bola, por razões óbvias não sofrerá
castigo.
Artº 7º
- No caso de interrupção do jogo por desentendimento geral:
Parágrafo
1º - Se durante o período de pancadaria, esta não finalizar no máximo de quinze
minutos, e regressar a paz, o jogo será reatado no dia seguinte mantendo-se o
resultado.
Artº 8º
- Não é permitido a qualquer interveniente, jogar a primeira parte pelo «Sul» e
a segunda parte pelo «Norte» ou vive versa, mesmo em caso de o número de
jogadores ser ímpar.
Artº 9º
- Nesta caso a equipa com jogadores mais velhos ou mais fortes «tipo Joaquim do
Boi» jogará com menos um jogador.
Artº 10º
- Estas deliberações são extensivas a todas as equipas já constituídas ou a
constituir pelo «Norte» ou pelo «Sul» e serão por pouco tempo.
Em abono
da verdade, diga-se que a linguagem e o calão utilizados na discussão deste
texto, não é o aqui descrito porque obviamente os termos foram muito
diferentes.
Quanto
ao jogo marcado, deverá seguir dentro de momentos, após a assinatura destes
estatutos, se isso acontecer; porque há muitas mãos no ar, umas abertas outras
fechadas procurando atingir os olhos ou os narizes dos aqui presentes.
Dada a
generalização do conflito e à falta de pedras que permita outra solução;
passados quinze minutos sobre o início do conflito, e à falta de quórum foi
esta assembleia anulada.
Amanhã,
de certeza haverá novo encontro «Norte – Sul», mas a deliberação para tal será
tomada durante as aulas da D. Olímpia. Vai assinar o único presente, porque a
debandada foi geral.
Sozinho
e sem testemunhas
Praia
da Costa tantos de tal, ano de 1939
O ajudante
à festa:
Assina:
Fernando «Pinguinhas»
********
Quanto
às promessas do Estado Novo e por ser verdade refira-se que:
No final
do ano lectivo de 38/39 dos dez a doze garotos com idades compreendidas entre
os nove e os onze anos que terminaram a 3ª classe, só dois continuaram na
escola. O Manuel do Evandro «Peão» que se matriculou em Lisboa, o outro, o
João, no Botequim na Charneca de Caparica. Diariamente ia e vinha a pé
acompanhado da professora Carolina Sopa que também vivia na Costa.
O percurso
pedonal por veredas e atalhos foi difícil principalmente no Inverno mas, o João
concluiu o 2º grau de Instrução Primária com aprovação, o mesmo sucedendo ao
«Peão».
Os restantes,
a maioria iniciaram a vida piscatória, começando a sua actividade pelo «giro»,
e destes, só dois ou três foram excepção.
Na escola
ou fora dela os núcleos de garotos que jogavam à bola na praia serviram de
embrião à futura equipa «Homens de Amanhã» mas isso são outras histórias.”
Fonte bibliográfica: Camilo (2018; pp. 83-91)