Nuno Santos nasceu em Lisboa, em
1977, filho de pais cabo-verdianos, mas cresceu e vive na Margem Sul, primeiro no
Monte da Caparica, depois na Arrentela. Licenciou-se em Sociologia, foi um dos fundadores
da «Khapaz — Associação Cultural de Afrodescendentes», com sede no Seixal, e desenvolve
trabalho de acção social e cultural.
É um dos músicos fundamentais do
hip hop português, com uma carreira
de mais de duas décadas, onde é conhecido por Chullage. Através das suas letras
questiona as desigualdades sociais e o racismo,
como nos álbuns Rapresálias (2001), Rapensar (2004) e Rapressão
(2012).
Nos
últimos anos alargou a sua intervenção a outras áreas, integrando o «Teatro
Griot», co-fundando o «Peles Negras Máscaras Negras
- Teatro do Escurecimento» e colaborando com os artistas visuais Vhils e Mónica de Miranda. Actualmente
dedica-se ao desenvolvimento de «Prétu», alter-ego artístico em que explora as suas origens africanas.
Fotografia de Daniel Rocha para o jornal «Público» |
Cinco perguntas (de Mário Lopes), cinco
respostas (de Nuno / Chullage), de uma entrevista ao jornal «Público»:
É
músico e sociólogo, trabalha em teatro e em artes visuais. Todas actividades
afectadas pelas pandemia. Como foi a sua vida neste período?
Devo confessar
que aqueles primeiros dias até foram bons. Estava muito cansado e há muito que
me propunha estar em casa. Ao mesmo tempo que o meu corpo estava a entrar num
espaço de descanso, a cabeça estava a acelerar, a tentar perceber o que se
estava a passar. A minha preocupação, inicialmente, não foi tanto do ponto de
vista da saúde, mas de tentar perceber, do ponto de vista político e económico,
o que se poderia instalar a partir disto.
Como
dizem os manuais de auto-ajuda e como ouvimos tantas vezes durante a crise
financeira anterior, esta crise também será uma oportunidade?
Esta crise é
trágica, mas será uma oportunidade para a grande finança e para o fascismo
tecnológico. Quando for dito às pessoas que serão instalados sistemas de
vigilância para que possam circular em segurança e saber quem está contaminado,
vão aceitar. Porque têm medo de morrer. Aceitando isso, terão de aceitar também
tudo o que permitirá essa tecnologia: saber onde estás a cada momento, como bate
o teu coração, o que acabaste de comprar, com quem estiveste. As tecnologias
trazem possibilidades e trazem o outro lado, mais sombrio. O que me assustou
foi não saber se iremos reflectir sobre tudo isto a tempo, com a mesma
velocidade com que esta acção da natureza chegou e se impôs enquanto nós
andamos aos tropeções a tomar medidas. Não acho que devamos pôr a nossa saúde
em risco, digo é que temos de ser críticos e não ficar pela câmara de eco do
Twitter e do Instagram. Se já nem podemos tomar como verdade o que é tido por
informação, quanto mais viver numa sociedade em que a opinião se tornou a
verdade.
Durante
a pandemia, foi abordada a forma como a crise de saúde pública espelhou as
desigualdades sociais. Por exemplo, o Bairro da Jamaica, no Seixal. Foi
estigmatizado como foco do vírus, ou levantou a discussão sobre a falta de
condições de habitação?
A questão do
Jamaica é consequência de um discurso que se está a instalar de que os pretos e
os ciganos é que estão a passar o covid. Mas, como disse o presidente da câmara
de Loures, “e os transportes?”. As pessoas foram postas em casa, a seguir
disseram-lhes que tinham de ir trabalhar e os transportes não acompanharam essa
necessidade. Já viajei em hora de ponta num transporte público e era como se
não houvesse covid. É um discurso que está a aparecer cada vez mais: “Estes
gajos é que propagam isto”. Não é verdade, existem focos, de várias formas, em
sítios diferentes. Tal como acontece nos Estados Unidos, há uma racialização
desta doença. É uma situação complicada, mas haverá gente a ter epifanias:
“temos de melhorar as condições de habitação”. Mas essa consciência devia vir
associada à ideia de que a habitação é um direito, porque este tipo de
habitação não pode existir para ninguém. Temos mais de 40 anos de democracia e
desde o início desta democracia que se definiu que a habitação é um direito.
Não é só um direito quando a falta de condições de umas pessoas põe em causa a
saúde de outras. Não pode haver luxo e miséria porta a porta. Habitação não é
mercadoria, é um direito.
Parece
certo que estamos num momento de transição, mas não sabemos ainda para que
futuro.
Não temos de
saber. Temos sempre construído a História sem saber em que direcção, muitas
vezes em reacção a algo que deixa de ser possível. Acredito que há pessoas que
estão a pôr em causa os seus velhos hábitos. Teremos de transformar-nos, porque
isto assustou-nos e é bom que nos tenha assustado, para entendermos que a
natureza ainda tem poder e que nós podemos ter o poder de queimar a Amazónia,
mas não conseguimos lidar com este bichinho que nem vemos. A natureza não são
só as árvores, os leões e os elefantes para tirar uma foto. A natureza
regenera-se. E nós? Se o ser humano quer mais umas centenas de anos de vida tem
de pôr em causa o seu paradigma económico e social. É interessante pensar em
como coexistir com os outros animais e plantas, mas também reflectir neste modelo
económico que assenta no racismo, na exploração, na habitação como mercadoria
pura, nas relações de poder hemisfério norte-hemisfério sul, que vive de
conflitos mundiais para extrair. Uma economia global em que as pessoas circulam
à toa a toda a hora, com os aviões a subirem e a descerem em low-cost
ininterruptamente, o combustível a poluir tudo.
Deste
lugar em que estamos agora, em plena pandemia, olha para o futuro e sente-se
optimista ou pessimista?
Estamos numa
transição e esta era que vamos atravessar agora será um desafio. Não quero
pensar que transformação será essa porque me assusta. Quero assumir que é um tempo
de transformação e que não nos permitirá ficar quietos. Vamos viver tempos
muito polarizados, mas alguma mudança advirá deles e é a mudança que temos de
procurar. Há um escrito anarquista que diz que ficamos à procura da luzinha lá
ao fundo sem nunca sair do túnel porque, se cavássemos um buraco no túnel,
íamos ter medo daquela luz toda. Mas se o agora não nos serve, por que é que
haveremos de lutar para ficar com ele? Vamos tentar manter o que temos agora
porque lá à frente está o desconhecido? Mesmo que se instalem regimes
totalitários, tecnológicos ou económicos, isso não será novo. Já aconteceu
antes e sempre houve resistência. Este marasmo, esta ideia feita de que o
capitalismo e a globalização são o fim da História, é que não pode continuar.
Não digo que o desafio não seja assustador, pela crispação, pela falta de
sítios a que nos agarrarmos no meio de tantas vozes e de tantas verdades,
mas isso obriga-nos a procurar o nosso centro, espiritual e ideologicamente.
Gosto de pensar que há um sítio na História em que não somos pretos e brancos,
homens e mulheres, mas em que somos humanos e em que, como humanos, somos como
outro bicho qualquer, com as nossas características específicas. Há um caminho
tecnológico que nos quer transformar em Deus e há um pensar económico que quer
massacrar todas as outras espécies em prol da nossa. Esse é o caminho que
seguimos até agora e esse é o caminho que não serve. Esta transformação vai
trazer conflito, mas também vai trazer uma mudança de pele.
Esta entrevista pode ser acedida
na sua totalidade através da página Documentos
deste blogue, clicando na pasta Documentos
da Nossa Banda
Fonte: entrevista
de Chullage a Lopes (2020)