segunda-feira, 30 de março de 2020

[0231] Porque vale a pena ler «Vulnerabilidades: pensar um país frágil», de José Reis?


Este blogue tem como objecto a Educação; e o objecto da Educação é o Património.
O Património é o que legamos às próximas gerações, e que elas aprendem a conhecer e aprendem a questionar - para o manter, para o ampliar, para o transformar.
A situação que já vivíamos, e especialmente a que agora estamos a viver, interroga tudo quanto pode ser legado entre gerações. E a interrogação é uma parte decisiva do Património.

José Reis dirigiu-se-nos assim:

Falemos de economia política. Falemos da política como deliberação coletiva. Soframos e decidamos. Portugal é uma periferia, mas uma periferia persistente.

No Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais, temos vindo a trabalhar na preparação de um livro que designámos Vulnerabilidades: Retrato de um país frágil (uso quase a mesma expressão para título deste artigo). Achávamos que Portugal estava a ser sujeito a processos relevantes de geração de vulnerabilidades e que estas se podiam identificar em diferentes escalas e dimensões. Era pelas nossas mãos, em vários planos, que tal estava a acontecer, visto que as vulnerabilidades são geradas ou induzidas por processos institucionais e políticos, isto é, por deliberações e formas de organização que juntam novas fragilidades à condição necessariamente incerta e contingente da vida individual e coletiva.
Provavelmente este livro era, na análise a que procedíamos, sobre o passado. O passado cuja aceleração se deu nos anos de 1990, quando os capitalismos foram tomados pelo capital financeiro, que passou a comandar intensamente a vida coletiva, incluindo os Estados. Ou o nosso passado mais recente, o que acabou há dias, quando bastava olhar para além do orçamento, do PIB ou do volume de emprego para tentarmos compreender o que de mais profundo a austeridade nos fez. Não pretendia ser um livro profético nem somos prosélitos. As razões que pudéssemos ter nos alertas que queríamos lançar doem-nos hoje profundamente, quando a vida nos foi tomada de assalto de uma forma disruptiva inimaginável.

Há coisas que custa invocar quando a vida está tão convulsa. Dizem-me, não confirmei, que há prateleiras cheias de meios-sapatos nas nossas zonas onde esta indústria se localiza. Sempre foi estúpido montar sapatos onde antes se sabia fazer tudo, mandando agora vir de muito longe algumas partes que aqui se produziam. Há 35 anos estudei a indústria metalomecânica de Águeda e a das bicicletas em particular. Tratava-se de um caso notável de um «sistema produtivo local»: aberto, mas autocentrado em culturas técnicas e na organização, no próprio território, das inter-relações essenciais, que articulavam vários setores e ramos de atividade. Dez anos depois voltei lá. Nas estatísticas já tinha visto que havia bastante trabalho feminino: ótimo, fosse a razão boa. Mas a razão era outra: já não se produziam bicicletas, montavam-se bicicletas. É hoje claro para todos que, para além de estúpido, isto é perigoso. Estes são exemplos singelos. Poupo os outros. Tanto os ainda mais volumosos, como aqueles que poupo por pudor. Estes são tempos de falar serenamente, para que se ouça melhor.

Entre o que subitamente mudou há duas variáveis essenciais: tempo e espaço. O tempo, essa variável com que tentamos compreender a evolução, as mudanças, os ciclos, isto é, os avanços e os retornos, mudou radicalmente. Tornou-se vertiginoso. Revolveu a vida, em vez de apenas a conduzir. O espaço foi-nos devolvido, reposto nas nossas mãos, depois de nos ter sido retirado em nome de cosmopolitismos superficiais, globalizações insensatas e mobilidades quase patéticas. Estragado, mas devolvido. Temos que pegar em ambos e usá-los. Para isso, talvez ajude pensar no que se segue.

Há poderes que não se entregam a quem não usa as mesmas regras ou os mesmos objetivos. Há coisas que são do Estado e dos Estados e elas só fazem sentido nos seus próprios contextos para serem legítimas e servirem para agir, não para servir senhores. Podem partilhar-se, pode até ser muito útil que haja espaços transnacionais de formação de poder. Claro que a União Europeia é um deles. Se for outra. Feita agora e por todos. Eu nunca fui capaz de pensar que a UE é intrinsecamente má, embora ache que ela foi o mais poderoso mecanismo de transferência de poder para o capitalismo iníquo da finança e dos mercados, protegendo-os e desprotegendo quem a podia legitimar. Não deixarei de pensar assim.

Há ativos cuja transação não se promove como quem leiloa coisas comuns. Sim, falo de quem presta serviços coletivos e de interesse geral – não basta regulá-los, é preciso possuí-los coletivamente. Sim, falo do que estrutura a produção. Falo do imobiliário. E falo, enfim, do próprio território, das cidades que se esvaziam para entrarem novos utilizadores, do território de dentro do país, que se esvazia das pessoas que vão servir aqueles que se concentram nos espaços que lhes oferecemos.

Há relações que têm de ser desenvolvidas num quadro preciso, fiável e articulado. Não sob o ímpeto de transações sem lugar nem rosto. Para que o mundo se organize todo assim, e não como se fosse plano. Não há economia sem quem a realiza nem sem aqueles a quem ela se destina, no momento da repartição e da geração de bem-estar. A economia usa os mercados, não é os mercados.

Uma economia é um sistema de produção e de provisão de bem-estar. Não sendo uma simples plataforma de transações, a economia mede-se pelo valor que cria, pela estrutura produtiva que adota, pelas capacidades que desenvolve, pelo nível de autossuficiência que garante, pela dependência face ao exterior que evita. É sujeito e objeto da economia política. Deve haver planeamento, intervenção e organização públicas para satisfazer necessidades e servir a comunidade. É um lugar para fazer e para aprender. Não para se perder nas linhas abstratas de um mapa sem territórios. Aprendemos que é possível parar. Aprendamos que é possível e necessário decidir em nome do povo!

Lugares são sítios de vida, não apenas pontos de passagem. Uma vez, compreendi (isto nunca mais me saiu da cabeça e lembro-me agora a toda a hora) que certos tipos de cidades podem transformar-se em espaços ocupados por teias de aranha, se tiverem sido feitas não para a vida, mas para a vertigem relacional. Basta que um vento mau sopre. (Explico-me para ser mais claro: aconteceu passar no Dubai, lugar que pouco me importa, mas fiquei 24 horas para ver com os meus olhos o que imaginava; atravessei a cidade e ganhei esta ideia que me passou a acompanhar.)  
Sim, vamos discutir muitas coisas, umas velhas, outras novas. Não sabemos se o vamos fazer bem ou mal. Falaremos em primeiro lugar de poder, isto é, de capacidades para deliberar. Falaremos do contexto em que queremos exercer esse mando e das finalidades que lhe atribuímos. Falaremos da finalidade da vida.

Vamos emocionar-nos profundamente, verter lágrimas de tristeza por vítimas, de alegria por heróis, reconhecer-nos em erros, uns evitáveis, outros não, e em desempenhos notáveis. Por favor, não percamos este tempo. Falemos de economia política. Falemos da política como deliberação coletiva. Soframos e decidamos. Portugal é uma periferia, mas uma periferia persistente.

Fonte: artigo de opinião de José Reis no jornal Público (2020), tendo os espaçamentos entre parágrafos e os negritos sido acrescentados pelo responsável por este blogue

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