Porque é particularmente pertinente para os tempos que todos
estamos a viver:
O que vem aí, ninguém sabe.
Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em sofrimento,
em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá ser uma tal
catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo. Será um desastre
planetário e regional, colectivo e individual, já presente e ainda futuro,
conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros
mas cada vez mais perto. Não é o simples medo da morte, é a angústia da morte
absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com o sentido
e quebra o nexo do mundo.
As forças que provocam a pandemia
pertencem a uma ordem de causas estranha à ordem humana. E, no entanto, põem-na
radicalmente em questão. Constatamos agora que a sociedade, as instituições e
as leis que criámos para nos protegerem, e nos assegurarem uma vida justa,
falharam redondamente. Não construímos uma vida viável para a espécie humana.
Os extraordinários disfuncionamentos dos serviços de saúde de tantos países, a
falta de coordenação e solidariedade dos estados-membros da União Europeia
quando se tratou de ajudar a Itália, a criminosa e leviana arrogância de Trump no caso dos testes, a incapacidade
de todos os governos de executar uma política sanitária eficaz sem utilizar
meios mais ou menos autoritários, todo esse desnorte que deixou proliferar o
vírus mostra de sobremaneira que qualquer coisa de profundamente errado
infectou, desde o início, a história dos homens. Emmanuel Macron acaba de
descobrir que “a saúde não é uma mercadoria” que tenha um preço. O coronavírus,
pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto,
torna todos iguais – não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde
e à justiça.
Não se trata, como já ouvimos dizer, de pôr em causa a nossa
civilização, mas as suas formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de
laços sociais cada vez menos aceitáveis. Esta terrível experiência que estamos
a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as
alterações climáticas.
O que fazer? Dos
órgãos políticos responsáveis vêm-nos ordens e injunções contraditórias. Por um
lado, dizem-nos que a luta contra a epidemia só terá êxito se juntarmos todos
os nossos esforços individuais, se agirmos solidariamente na consciência da
pertença comum à comunidade. Por outro lado, somos incitados a isolarmo-nos, a
ficar em casa, a manter o distanciamento social requerido, a não beijar,
abraçar, tocar. Cancelam-se os eventos e espaços de lazer, fecham-se as
fronteiras. Reduzir-se-á então o nosso contributo a obedecer passivamente ao
auto-isolamento anti-social?
Está a surgir, espontaneamente, uma
solução “tradicional” de compromisso: a comunidade reencontrar-se-ia na acção
de governação de um líder firme. Giuseppe Conte, primeiro-ministro italiano,
até aqui sem grande popularidade, tem hoje o apoio da grande maioria do povo. Tomou
medidas drásticas, mostrou certezas, acalmou a ansiedade e o pânico da
população. Sem dúvida que idêntica adesão popular recebeu António Costa, pelas
mesmas razões e com a mesma empatia. A energia do medo é absorvida pelo líder e
transformada em adesão. Qualquer que seja a sua eficácia, esta não pode ser a
única e exclusiva “solução”. Que podemos e devemos fazer, nós que nos fechamos
em casa, e que não queremos que o auto-isolamento se torne apenas uma defesa
egoísta da família, numa atitude que reforça, afinal, o corte com a comunidade?
É preciso, primeiro, combater o medo
da morte. Para tanto, dois requisitos essenciais, a recusa da passividade e o
conhecimento do “inimigo”. Quanto mais activos, mais aptos, mais fortes para
afastar o medo. Se bem que o medo acorde a lucidez, e neste sentido possa ser
benéfico, sabemos que ele encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo,
limitando o universo a uma bolha minúscula que nos aprisiona e nos confunde.
Comunicar com os outros e com a comunidade é furar a bolha, alargar os limites
do espaço e do tempo, tomar consciência de que o nosso mundo se estende muito
para além dos quartos a que estamos confinados. Foi certamente o que sentiram e
fizeram os napolitanos que se puseram a cantar à noite, de varanda para
varanda, exorcizando o medo e criando um novo espaço público comum.
Trata-se de
combater este medo da morte. Que não é o medo, digamos, habitual, de
morrer, mas uma espécie de terror miudinho, subterrâneo e permanente, que toma
conta da vida. Não na apreensão do mal final, mas como se a morte, enquanto
avesso da vida, enquanto letargia absoluta, rigidez definitiva, paralisia e
abismo, viesse ocupar o terreno do nosso tempo quotidiano. É contra a tendência
a sermos capturados por um tal sentimento de medo que é preciso lutar –
precisamente, mantendo-nos activos e preocupados com os outros e a vida social
de que fazemos parte.
Este medo é,
sobretudo, o medo dos outros. O contágio vem inopinadamente, violentamente e ao
acaso. Qualquer um, estrangeiro ou familiar, pode infectar-nos. O acaso e o
contacto passam a ser perigo e ocasião de morte possível, e todo o encontro, um
mau encontro. Neste sentido, o outro é o mal radical. A relação com os outros e
a comunidade sobre um abalo profundo. O laço social, que, mais do que na inveja
e no amor-de-si, se enraíza no “amor” ao outro (como afecto gregário da
espécie), encontra-se comprometido, ameaçando romper-se. O outro é o inimigo,
que quer a minha morte: do medo do ataque mortal ao pânico paranóico vai apenas
um passo. A epidemia do novo coronavírus faz também emergir, à tona da consciência
social, o pior das nossas pulsões mais sedimentadas. Mas também o melhor:
aquele afecto, presente desde sempre em certas profissões, como a dos médicos e
enfermeiros, torna-se agora plenamente visível aos olhos do cidadão planetário.
Um fenómeno inédito está a surgir: a
pandemia transforma a percepção que se tinha da globalização. Sabíamos que ela
existia, conhecíamos os seus efeitos (financeiros, climáticos, turísticos), mas
só raros tinham dela uma experiência vivida. Graças ao coronavírus, e pelas piores
razões, o homem comum tem agora, ao longo do seu tempo quotidiano, a
experiência da globalização. Deixou de ser abstracta, tornou-se uma
globalização existencial. Vivemos todos, simultaneamente, o mesmo tempo do
mundo.
Qual o futuro desta transformação?
Pode-se adivinhar já certos efeitos. A consciência planetária do perigo de
morte traz consigo uma certa percepção, imediata e concreta da humanidade, como
comunidade viva e nua. Para além do que separa os homens, há o que os faz
simplesmente humanos, a vida, a morte, o poderoso direito a existir, sem
condições nem prerrogativas. O que implica um igualitarismo primário e
primeiro, entre os indivíduos e entre os povos. As peripécias dos
proteccionismos xenófobos e racistas de Bolsonaro e de Trump, em tempo de crise
pandémica, parecem patéticas quando confrontadas com este espírito mundial que
se está a formar.
Por outro lado, a informação
veiculada pela comunicação social, a dependência de cada cidadão de um país
relativamente aos cidadãos de outros países, a exigência premente de
coordenação das políticas de saúde (e não só) de diferentes nações, o trabalho
em rede de cientistas por todo o mundo, está a levar à criação progressiva de
poderes transnacionais. São tudo bons sinais que se desenham no horizonte.
Acreditamos que tal evolução das consciências só poderá beneficiar a luta
decisiva, que virá em breve, contra as alterações climáticas.
Mas os bons
sinais não chegam para nos sossegar. Tanto mais que o medo que nos invade não
pára de se avolumar. No momento em que escrevo, chovem de todos os lados, da
Europa, da América, do Médio Oriente e da Ásia, as notícias mais alarmantes. A
pandemia cresce como um tsunami mundial, derruba e mata numa
avalanche incontrolável. O medo não é uma atmosfera, é uma inundação. Como
resistir, como desfazer, ou pelo menos atenuar o medo que nos tolhe? Com mais
conhecimento, sim, e mais informação, e mais entreajuda e racionalidade.
Resta-nos sobrepor ao medo que nos desapropria de nós, o medo desse medo, o de
sermos menos do que nós. Resta-nos, se é possível, escolher, contra o que nos
faz tremer de apreensão e nos instala na instabilidade e no pânico, a forças de
vida que nos ligam (poderosamente, mesmo sem o sabermos,) aos outros e ao
mundo.
Fonte: artigo
de opinião de José Gil (2020)
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