Queremos “consumi[r os nossos
arquivos memoriais] em nome apenas da parasitagem hedonista hodierna ou
interrogá-los constantemente, potenciando o seu poder criativo, e já agora
conservá-los para aqueles que virão depois de nós?”
Foi para ilustrar esta pergunta que Luís Raposo contou a seguinte
estória:
“Era uma vez, um
homem, José Leite de Vasconcelos, que moveu céus e terra em finais de
oitocentos para fazer um museu que contasse as origens remotas do «ser
português», muito mais do que do ser Portugal. Conseguiu finalmente instalá-lo
em Belém, na ala recém-reconstruída do Mosteiro dos Jerónimos, que na altura e
por influência do positivismo e do evolucionismo progressistas se preferiu
politicamente consagrar a tal narrativa, em detrimento da que contasse a
grandeza imperial. Passaram os anos, as décadas, os regimes, caminhou-se da
Monarquia para a República, desta para a Ditadura Militar e o Estado Novo… e o
«Museu de Belém» (assim simplesmente chamado porque não havia outro nas
redondezas) foi singrando, reunindo arquivos da terra, promovendo ou até
criando novos campos de estudo e novos oficiais dos mesmos. Chegou a Democracia
e com ela todo um novo entusiasmo pelo estudo libertador do passado, como
condição da libertação do presente e da garantia da liberdade no futuro.
É aqui que o contador da estória entra em cena. Nesse
museu, no museu onde trabalho faz agora precisamente quatro décadas, havia,
quando entrei, guardas de dia e de noite, estes com cães e licença de porte de
arma, havia auxiliares de limpeza (as primeiras cuidadoras das colecções, como
enfaticamente dizia Adília Alarcão, uma das pessoas com quem, mesmo sem disso
me ter dado conta, mais aprendi a amar os museus pelas pequenas coisas do
dia-a-dia), havia conservadores para várias colecções, havia arqueólogos com
actividade de campo ao serviço do museu (eu próprio, era um deles), havia
telefonistas, havia técnicos de laboratório (inclusive uma engenheira química,
isto para além do sector de arqueociências, com diferentes especialidades, como
a geologia ou a paleobotânica), havia secretaria com chefia própria, havia
bibliotecária, havia fotógrafo, havia almoxarife, havia marceneiro e havia
carpinteiro, havia, havia… éramos quase uma centena e apenas recorríamos a
aquisições de serviços externas quando realmente justificadas, em situações
técnicas (caso do transporte de peças para o exterior) ou para alargar o leque
da criatividade (caso dos projectos de exposições).
Havia também desenhadores (no plural), conforme a longa,
secular, tradição de uma Casa por onde passaram Guilherme Gameiro, Francisco
Valença, João Saavedra Machado, Dario de Sousa … E até o grande Stuart aí
colaborou, ocasionalmente. Em algumas décadas do século XX, especialmente
durante o Estado Novo, era no «Museu de Belém» (ou «Museu Etnológico», que
ainda ostentava no nome, conforme o baptismo que lhe deu o fundador) que se
reuniam alguns destes mestres e aí conversavam, trocavam experiências, talvez
também ideias, como o demonstram numerosas caricaturas do Sempre Fixe,
resistentes dentro dos limites que o lápis azul e a tesoura (repetidamente
representados por Valença) o deixavam. Diversas técnicas de representação
gráfica em arqueologia foram testadas, desenvolvidas, no que constituiu uma
escola prática. Os álbuns desses mestres, que no museu se guardam, constituem
por si sós tesouros nacionais. E nunca é demais lembrar que, em Arqueologia,
seja de campo seja de gabinete, incluindo registo de peças em museu, o desenho
é muito mais importante do que a fotografia: esta, para usar a expressão de
Mortimer Wheeler, «é mentirosa», porque dá a errada (e ingénua) sensação de
autenticidade; aquele é verdadeiro, porque expõe sem filtros a interpretação do
autor, desenhador e arqueólogo.
Conto tudo isto porque se reformou por estes dias a
Helena Figueiredo, aquela que poderá talvez ter sido a última desenhadora do
Museu Nacional de Arqueologia, já que não se vê no horizonte nenhuma
possibilidade de inverter a caminhada para o abismo em que os Museus Nacionais
se encontram em matéria de pessoal. Abismo que não é só pela falta do mais
aparente (vigilantes-recepcionistas), mas pela efectiva falta de pensamento
estratégico quanto ao que é ser museu e mormente museu nacional. Éramos próximo
de uma centena há quatro décadas, a grande maioria com contratos de trabalho
estáveis; cobríamos quase todos os sectores de especialidade necessários à
realização da missão do museu e confiávamos na perenidade intergeracional da
instituição. Hoje seremos pouco mais de três dezenas, recorremos a torto e a
direito a externalidades, à exploração dos mais jovens (bolseiros,
estagiários…), à precariedade em geral e até, cada vez mais, ao «voluntariado» …
Pergunto-me o que virá a seguir. A privatização
mercantilista dos museus nacionais que possam gerar receita, convertidos em
negócios destinados a distribuir lucro; ou, mais pudicamente, a sua
semi-privatização, entregues a sociedades de capitais públicos assentes em
sistemas de bilhética agressivos (insensíveis à dimensão cidadã), capazes, no melhor
dos cenários, de potenciar essas «ilhas de abundância», conservando e
promovendo os bens à sua guarda – ou meras centrais de emprego de «amigos» e
«correligionários», rodízios de mãos que se lavam mutuamente, no pior dos
casos?
E pergunto-me sobre tudo o resto, o que inexoravelmente
«não dá dinheiro». Ficará simplesmente ao abandono, entregue à sua apagada e
vil tristeza? Deixará o País de possuir arquivos de memória capazes de
executarem as suas missões, verdadeiros museus nacionais desde logo, geridos
com sentido de entrega à causa pública, com respeito por todos os que nos
precederam, todos os que hão-de vir … e para nossa própria felicidade, afinal?
Ou tudo isto não passa de inquietações sem sentido, inerentes
à idade, à velhice, à aproximação da reforma e decorrentes de um sentido de
patriotismo emancipador, porventura fora de moda?”
Fonte (jornal):
Raposo (2019)
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