No passado dia 19 de Novembro foi
apresentado na Casa da Cerca, em Almada, o livro «A Cidade do Teatro».
Trata-se de uma apresentação dos 47
grupos que participaram nas 20 edições do Mostra de Teatro de Almada (portanto de
1996 até este ano), enriquecida por um percurso através dos seus contextos
histórico, político e social.
Muito desta história e vários
destes grupos teve uma forte e interessante à educação.
A Cidade do Teatro [edição comemorativa pelos 20 anos da
MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA / 1996-2016] foi coordenada por Sarah
Adamopoulos e editada este ano em Almada, pela Câmara Municipal de Almada e pelo
Ninho de Víboras.
Eis um seu apanhado,
parcialmente histórico, sobretudo as ligações entre o teatro e as escolas ...
Em 1509 Gil Vicente escreve e estreia em Almada o «Auto da
Índia», para entretenimento da corte (pp. 39-40).
E, em 1843, Almeida Garrett faz decorrer em Almada o seu «Frei
Luís de Sousa» (pp. 44-45).
A partir daí, o teatro em Almada é marcado pelos que em
Almada vivem.
Com a fundação, em 1848, da mais antiga colectividade de
Almada, a «Sociedade Filarmónica Incrível Almadense» (pp. 52-53), e com a cisão
que levou à fundação, em 1895, da «Academia de Instrução e Recreio Familiar
Almadense» (p. 53), o teatro encontrou duas das colectividades onde se
desenvolveria durante todo o século XX, a elas se tendo juntado outras (pp. 53-61).
As lutas operárias no início do século XX, em Almada, nomeadamente
nos sectores corticeiro e moageiro, foram uma das origens para o surgimento de
novas associações, visando a solidariedade, a instrução e o recreio, algumas
fundadas ainda no século XIX, nelas tendo surgido grupos musicais e grupos
cénicos (pp. 62-65).
“O teatro fazia-se com todos e para todos, incluídos os de
outros lugares, por vezes distantes, e de outros costumes – característica
constitutiva do teatro não burguês.” E, usado também como forma de tomada de
consciência pelos anarquistas e socialistas, “o teatro toma uma parte
considerável do lugar anteriormente ocupado pela música, que já não chegava
para sossegar os espíritos de todos.” (p. 63)
“Compostos por diferentes actuações, os programas dos
espectáculos promovidos pelas colectividades de cultura e recreio integrarão o
teatro, a música e a poesia, terminando muitas vezes com bailes, cuja música
era executada pelas filarmónicas e outros agrupamentos musicais –
distinguindo-se do que sucedia nos palcos burgueses, onde havendo teatro não
havia música, o inverso sendo também verdadeiro.” (p. 65)
A criação, em 1929, da Inspecção-Geral dos Espectáculos
iniciou um longo período de fiscalização e repressão da liberdade de expressão
(pp. 65-68): “Os anos mais pesados no Estado Novo uniformizam o teatro,
popularizando sobremaneira o teatro de revista, as operetas musicais, e, enfim,
o teatro mais ligeirinho e de entretenimento.” (p. 69)
Algumas colectividades irão resistir a esta pressão e serão
baluartes da oposição ao regime (pp. 69-71). Em 1969, em Almada, “o Jornal das Colectividades celebrava o teatro
amador feito pela população como uma manifestação de expressão e liberdade do
carpinteiro, do electricista, da modista ou da cabeleireira que encontravam na
arte dramática uma actividade que engrandecia os seus horizontes e os poupava à
platitude da mais banal quotidianidade.” (p. 71)
“As colectividades
foram sempre as universidades e os palcos do povo, e também lugares onde as
pessoas puderam aprender o que era a democracia, através das assembleias de
associados e dessas práticas participativas.” (Domingos Torgal, citado na
p. 72)
Entre 1967 e 1969:
Rogério
Carvalho, professor de Matemática na Escola Industrial e Comercial Emídio
Navarro (e mais tarde na Anselmo de Andrade) organizou “grupos de teatro escolares, trabalhando com a professora de Português
Elsa Rodrigues dos Santos.” (António Matos, citado nas pp. 74-75)
Em 1967: Helena Peixinho,
professora de Português e Francês, cria um Clube de Teatro na Escola D. António
da Costa, onde também “havia ateliers
de Jornalismo, de Poesia, de História”, “actividades extracurriculares que
aconteciam fora do horário escolar, sendo contudo muito participadas, por
alunos que tinham idades compreendidas entre os 9 e os 14 anos (p. 76).
Em 1972: nasce na
Emídio Navarro o grupo de teatro Amadores de Almada, resultado do “trabalho de
experimentação teatral de um professor de Matemática [Rogério Carvalho] para
quem o teatro era já então uma forma de existir, de estar no Mundo e de olhar
para todas as coisas que há nele.”
Em 1974: alguns
dos estudantes envolvidos nos Amadores de Almada cria o Teatro de Acção
Cultural de Almada (pp. 73-74)
Em 1981: as
actividades do Clube de Teatro da Escola António da Costa são designadas por
Linguagem Teatral (p. 76); “pretendíamos
relacionar a Expressão Dramática com o Teatro, utilizá-los como instrumento de
afirmação do eu (ser único e autónomo) e no respeito pelo outro.” (Helena
Peixinho, citada na p. 77)
A partir de 1986,
ano em que a Lei de Bases do Sistema Educativo foi aprovada: “Na sequência dessa legitimação foram criados
cursos de formação para professores e foram formados muitos professores em
Almada. João Mota, Miguel Loureiro ou José Pedro Caiado, entre outros, vinham
aos sábados a Almada, à Sala de Dança da Escola D. António da Costa, fazer
formação gratuita aos professores. E Joaquim Benite recebia os
professores-formandos no antigo Teatro Municipal de Almada, actual
Teatro-Estúdio António Assunção. Eram sábados inesquecíveis. Porque eram
transformadores. O teatro atingia as pessoas de forma intensa, continha uma
implicação emotiva. O que teve repercussões importantes na formação de
públicos, pois talvez mais importante do que fazer nascer nos alunos e
formandos, em geral, o desejo de ser actor é aprender a ver teatro.”
(Helena Peixinho, citada na p. 77)
Uma das motivações para esta formação de professores visava
o uso do “teatro na actividade lectiva”, o que Helena Peixinho já fizera em
relação ao Português e ao Francês (p. 78).
O Mundo do Espectáculo começou por ser “um
projecto apresentado por Helena Peixinho e Ângela Mota à ESE de Setúbal e
aprovado pelo seu Conselho Científico”, com “residência na Escola D. António da
Costa”, tendo mais tarde dado origem à associação almadense com o mesmo nome. A
esta associação “estão ligados vários pedagogos” (p. 78), como “Manuel João,
fundador e director do Teatro & Teatro, projecto nascido numa escola de
fronteira entre Almada e Seixal, de carácter assumidamente formativo e
composição continuamente variável e aberta à comunidade em geral.” (p. 79)
“Com Helena Peixinho e os seus pares e continuadores, o
teatro mudou o rosto da escola e dos seus habitantes, e abriu outros horizontes
– desde logo, a possibilidade de criar algo novo, mesmo se com materiais
preexistentes, como amiúde sucede com os textos dramáticos que são usados nas
escolas. As Férias Artísticas e o Festival Inter-Escolas (cujo objectivo
inicial foi o de proporcionar o intercâmbio de experiências e aprendizagens das
escolas integradas no projecto, e não a competição entre aquelas) são frutos
ainda sobreviventes desses tantos anos em que o teatro esteve tão presente nas
escolas de Almada e do Seixal (os lugares de onde provinham os
professores-formandos.” (p. 79)
“(…) estas actividades
extracurriculares potenciavam uma melhoria ao nível do comportamento e do
aproveitamento dos alunos. O teatro mudava a forma de estar na escola e na
vida.” (Ângela Mota, citada na p. 79)
Nos anos de 1970
surgiram em Almada outras fontes, não escolares, para o teatro, como o Grupo de
Iniciação Teatral da Trafaria, nascido em 1972 (p. 81), e o Centro Cultural
de Almada, fundado em 1979 (p. 88). E na década seguinte nasceu a Companhia de
Teatro de Almada (p. 91), uma “parceria estratégica” entre o Grupo
de Campolide, que lhe deu origem, e a autarquia almadense (p. 101).
Alguns dos actores envolvidos nestes grupos deram continuidade
ao “trabalho de formação teatral nas escolas” que havia sido iniciado nos anos
70 (p. 94).
Em 1984, o Teatro
da Academia Almadense organizou a primeira edição da Festa de Teatro de Almada (p. 95),
que mais tarde se internacionalizou, e se transformaria no actual Festival de
Almada (pp. 95-96).
1996 é o primeiro
ano da Mostra de
Teatro de Almada (p. 149), “iniciativa que partiu da Câmara
Municipal de Almada” (p. 135): “Penso que
um dos aspectos interessantes da Mostra foi ter proporcionado aos [diversos]
grupos [de teatro com actividade em
Almada] esse encontro e o conhecimento
mútuo. (…). Os grupos são hoje uma comunidade, que se encontra fora do espaço
da Mostra, para aí estabelecer trocas. Há uma enorme mobilidade nalguns
elementos, que colaboram com grande naturalidade nos projectos de outros, coisa
que antes da Mostra não acontecia, creio.” (Teresa Pereira, citada na p.
136)
“A Mostra é a única
plataforma de comunicação entre os grupos e a Câmara, uma oportunidade
imperdível de contactar com os responsáveis autárquicos e estes comprovarem que
o parco apoio público que lhes é dado tem resultados muito positivos, quer na
relação de proximidade que existe na comunidade quer na dignidade das suas
realizações.” (Maria João Garcia, citada na p. 139)
Outras pistas, respigadas aqui e acolá neste livro, sobre a
ligação entre «escola» e «teatro»:
·
Karas (João Teixeira), do grupo «Ninho de
Víboras», começou a fazer teatro na Escola Secundária do Monte de Caparica (p.
124);
·
O grupo Artes e Engenhos, com sede na Faculdade de
Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova de Lisboa (p. 207);
·
O grupo As Raparigas … de Três Pontinhos foi “formado por
ex-alunos da disciplina de Oficina de Expressão Dramática da Escola Básica e
Secundária Anselmo de Andrade, no ano lectivo 1999-2000, que haviam trabalhado
em contexto escolar A Casa de Bernarda
Alba, de Federico Garcia Lorca.” (p. 211)
·
O grupo B.O.T.A. foi criado por “alguns jovens
recém-saídos do ensino secundário – onde tinham participado num clube de
teatro, muito activo, dirigido por Isabel Canto, professora de Português e
Francês, em colaboração com outras duas docentes, na Escola Secundária nº 2 do Laranjeiro”
(p. 215);
·
O Novo Núcleo de Teatro da FCT foi criado por
estudantes da Faculdade de Ciências e Tecnologia (p. 277);
·
O grupo Teatro & Teatro teve por “génese o teatro
feito em contexto escolar a partir de 1988 pelo professor, encenador e pedagogo
teatral Manuel João”, sendo “inicialmente integrado unicamente por ex-alunos de
Expressão Dramática da Escola Básica de Corroios” (p. 351).