sábado, 4 de setembro de 2021

[0300] O testemunho de Carlos Fiolhais sobre os professores

Depois de na mensagem «0296» termos tido a opinião do Galopim de Carvalho sobre a profissão docente, desta vez temos a opinião de Carlos Fiolhais.

REGRESSO ÀS AULAS

Pela primeira vez, desde que comecei a ensinar, há 44 anos, não regresso às aulas. Dei em Julho a «última aula» em Coimbra, dizendo que poderia, se houvesse interesse, vir a dar mais «últimas aulas», o que tem vindo a acontecer. A diferença é que não vou iniciar nenhum curso para uma nova leva de alunos.
Já me perguntaram se não sinto um vazio. Respondo que não, pois tenho, tal como a Natureza em geral, horror ao vácuo. Tenho muitas coisas para fazer, a começar desde logo por ler uma pilha de livros que me aguarda há muito. É agora tempo para tudo aquilo que andava adiado. Como diz o belo trecho do Eclesiastes (3:1,2), «Para tudo há um momento, e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu:/ tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou.»
Mas, mesmo apartado do ensino formal, quero deixar uma palavra aos professores que vão agora começar um novo ano lectivo. A escola é a mais útil das invenções da Humanidade, uma vez que é ela que, ao longo do tempo, lhe tem garantido o futuro. Pode o pai não saber artes ou a mãe não saber matemática, mas a escola, da qual os professores são o imprescindível núcleo, tem por obrigação transmitir o melhor da herança humana. É a continuação da Humanidade que tem lugar sempre que professores e alunos voltam às aulas em Setembro. Uma criança com seis anos que esteja a entrar para o 1.º ano do ensino básico jamais voltará à mesma idade. É, para ela, o tempo de aprender a ler, escrever, contar, e tudo o resto que a escola proporciona. A profissão de professor, que abracei há décadas, é apaixonante, porque confere o privilégio de participar activamente no processo de passagem de testemunho entre as gerações. Os meus primeiros alunos têm hoje mais de 60 anos, ao passo que os últimos têm só 20. E, de cada vez que o professor está diante de novos alunos, sabe que essa é uma ocasião irrepetível na vida daqueles jovens.
A escola mudou nas décadas em que fui professor no activo. Mas foi mais na aparência do que na essência, com o PowerPoint a substituir o quadro negro e, nos últimos meses, com o Zoom a substituir a sala de aula. Porém, os meios tecnológicos não passam de quinquilharia, que será um dia substituída por outra. O essencial da escola não mudou nem pode mudar: é o contacto criativo e fértil entre professores e alunos, que prepara estes para a vida. Esquecendo o essencial, hoje em dia impera a miragem tecnológica: a preocupação do Governo na área da educação é fornecer miríades de computadores. Ele pensa que o pagamento aos quinquilheiros o dispensa da sua missão de fomentar o processo profundamente humano que deve ocorrer na sala de aula. Mas é aí que, com consciência humanista, começa o futuro.
Em Portugal, para além da propaganda político-tecnológica, há boas e más notícias. Uma boa é a diminuição do abandono escolar, mas uma má é a abstrusa reforma do ensino da Matemática. João Araújo, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, afirmou que se está a assistir à «destruição do ensino da matemática,» quando se querem fazer sessões de divulgação em vez da «construção metódica e estruturada do saber». O matemático João Queiró escreveu nestas páginas: «Essas mudanças vão no sentido do triunfo da ignorância dos jovens, pela desistência de lhes transmitir o conhecimento matemático acumulado e apurado durante séculos ou milénios.» Outras disciplinas também são maltratadas: Galopim de Carvalho, o grande mestre das Ciências da Terra, disse que «as sucessivas tutelas parecem estar mais interessadas nas estatísticas do que na qualidade do ensino,» e Miguel Barros, presidente da Associação de Professores de História, disse que «a situação do ensino da História é, nalguns casos, catastrófica».

Que podem fazer os professores? Não é fácil, dada a subalternidade a que têm sido remetidos, mas têm de resistir em nome da Humanidade de que são guardiões. Não só podem como devem continuar a dar o melhor de si aos seus alunos. Fala-se muito dos «heróis» do SNS, mas há também campeões nas nossas salas de aula, que dão triplos saltos sem receberem encómios. É a eles que quero saudar, louvando-os e encorajando-as, neste regresso às aulas.


Fonte: opinião de Fiolhais no jornal «Público» (2021)
Imagem: Wikipédia

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