sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

[0026] «A Cidade do Teatro» e a Educação

No passado dia 19 de Novembro foi apresentado na Casa da Cerca, em Almada, o livro «A Cidade do Teatro».
Trata-se de uma apresentação dos 47 grupos que participaram nas 20 edições do Mostra de Teatro de Almada (portanto de 1996 até este ano), enriquecida por um percurso através dos seus contextos histórico, político e social.
Muito desta história e vários destes grupos teve uma forte e interessante à educação.


A Cidade do Teatro [edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA / 1996-2016] foi coordenada por Sarah Adamopoulos e editada este ano em Almada, pela Câmara Municipal de Almada e pelo Ninho de Víboras.


Eis um seu apanhado, parcialmente histórico, sobretudo as ligações entre o teatro e as escolas ...

Em 1509 Gil Vicente escreve e estreia em Almada o «Auto da Índia», para entretenimento da corte (pp. 39-40).
E, em 1843, Almeida Garrett faz decorrer em Almada o seu «Frei Luís de Sousa» (pp. 44-45).

A partir daí, o teatro em Almada é marcado pelos que em Almada vivem.
Com a fundação, em 1848, da mais antiga colectividade de Almada, a «Sociedade Filarmónica Incrível Almadense» (pp. 52-53), e com a cisão que levou à fundação, em 1895, da «Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense» (p. 53), o teatro encontrou duas das colectividades onde se desenvolveria durante todo o século XX, a elas se tendo juntado outras (pp. 53-61).
As lutas operárias no início do século XX, em Almada, nomeadamente nos sectores corticeiro e moageiro, foram uma das origens para o surgimento de novas associações, visando a solidariedade, a instrução e o recreio, algumas fundadas ainda no século XIX, nelas tendo surgido grupos musicais e grupos cénicos (pp. 62-65).
“O teatro fazia-se com todos e para todos, incluídos os de outros lugares, por vezes distantes, e de outros costumes – característica constitutiva do teatro não burguês.” E, usado também como forma de tomada de consciência pelos anarquistas e socialistas, “o teatro toma uma parte considerável do lugar anteriormente ocupado pela música, que já não chegava para sossegar os espíritos de todos.” (p. 63)
“Compostos por diferentes actuações, os programas dos espectáculos promovidos pelas colectividades de cultura e recreio integrarão o teatro, a música e a poesia, terminando muitas vezes com bailes, cuja música era executada pelas filarmónicas e outros agrupamentos musicais – distinguindo-se do que sucedia nos palcos burgueses, onde havendo teatro não havia música, o inverso sendo também verdadeiro.” (p. 65)

A criação, em 1929, da Inspecção-Geral dos Espectáculos iniciou um longo período de fiscalização e repressão da liberdade de expressão (pp. 65-68): “Os anos mais pesados no Estado Novo uniformizam o teatro, popularizando sobremaneira o teatro de revista, as operetas musicais, e, enfim, o teatro mais ligeirinho e de entretenimento.” (p. 69)
Algumas colectividades irão resistir a esta pressão e serão baluartes da oposição ao regime (pp. 69-71). Em 1969, em Almada, “o Jornal das Colectividades celebrava o teatro amador feito pela população como uma manifestação de expressão e liberdade do carpinteiro, do electricista, da modista ou da cabeleireira que encontravam na arte dramática uma actividade que engrandecia os seus horizontes e os poupava à platitude da mais banal quotidianidade.” (p. 71)
As colectividades foram sempre as universidades e os palcos do povo, e também lugares onde as pessoas puderam aprender o que era a democracia, através das assembleias de associados e dessas práticas participativas.” (Domingos Torgal, citado na p. 72)

Entre 1967 e 1969: Rogério Carvalho, professor de Matemática na Escola Industrial e Comercial Emídio Navarro (e mais tarde na Anselmo de Andrade) organizou “grupos de teatro escolares, trabalhando com a professora de Português Elsa Rodrigues dos Santos.” (António Matos, citado nas pp. 74-75)
Em 1967: Helena Peixinho, professora de Português e Francês, cria um Clube de Teatro na Escola D. António da Costa, onde também “havia ateliers de Jornalismo, de Poesia, de História”, “actividades extracurriculares que aconteciam fora do horário escolar, sendo contudo muito participadas, por alunos que tinham idades compreendidas entre os 9 e os 14 anos (p. 76).
Em 1972: nasce na Emídio Navarro o grupo de teatro Amadores de Almada, resultado do “trabalho de experimentação teatral de um professor de Matemática [Rogério Carvalho] para quem o teatro era já então uma forma de existir, de estar no Mundo e de olhar para todas as coisas que há nele.”
Em 1974: alguns dos estudantes envolvidos nos Amadores de Almada cria o Teatro de Acção Cultural de Almada (pp. 73-74)
Em 1981: as actividades do Clube de Teatro da Escola António da Costa são designadas por Linguagem Teatral (p. 76); “pretendíamos relacionar a Expressão Dramática com o Teatro, utilizá-los como instrumento de afirmação do eu (ser único e autónomo) e no respeito pelo outro.” (Helena Peixinho, citada na p. 77)
A partir de 1986, ano em que a Lei de Bases do Sistema Educativo foi aprovada: “Na sequência dessa legitimação foram criados cursos de formação para professores e foram formados muitos professores em Almada. João Mota, Miguel Loureiro ou José Pedro Caiado, entre outros, vinham aos sábados a Almada, à Sala de Dança da Escola D. António da Costa, fazer formação gratuita aos professores. E Joaquim Benite recebia os professores-formandos no antigo Teatro Municipal de Almada, actual Teatro-Estúdio António Assunção. Eram sábados inesquecíveis. Porque eram transformadores. O teatro atingia as pessoas de forma intensa, continha uma implicação emotiva. O que teve repercussões importantes na formação de públicos, pois talvez mais importante do que fazer nascer nos alunos e formandos, em geral, o desejo de ser actor é aprender a ver teatro.” (Helena Peixinho, citada na p. 77)

Uma das motivações para esta formação de professores visava o uso do “teatro na actividade lectiva”, o que Helena Peixinho já fizera em relação ao Português e ao Francês (p. 78).
O Mundo do Espectáculo começou por ser “um projecto apresentado por Helena Peixinho e Ângela Mota à ESE de Setúbal e aprovado pelo seu Conselho Científico”, com “residência na Escola D. António da Costa”, tendo mais tarde dado origem à associação almadense com o mesmo nome. A esta associação “estão ligados vários pedagogos” (p. 78), como “Manuel João, fundador e director do Teatro & Teatro, projecto nascido numa escola de fronteira entre Almada e Seixal, de carácter assumidamente formativo e composição continuamente variável e aberta à comunidade em geral.” (p. 79)
“Com Helena Peixinho e os seus pares e continuadores, o teatro mudou o rosto da escola e dos seus habitantes, e abriu outros horizontes – desde logo, a possibilidade de criar algo novo, mesmo se com materiais preexistentes, como amiúde sucede com os textos dramáticos que são usados nas escolas. As Férias Artísticas e o Festival Inter-Escolas (cujo objectivo inicial foi o de proporcionar o intercâmbio de experiências e aprendizagens das escolas integradas no projecto, e não a competição entre aquelas) são frutos ainda sobreviventes desses tantos anos em que o teatro esteve tão presente nas escolas de Almada e do Seixal (os lugares de onde provinham os professores-formandos.” (p. 79)
(…) estas actividades extracurriculares potenciavam uma melhoria ao nível do comportamento e do aproveitamento dos alunos. O teatro mudava a forma de estar na escola e na vida.” (Ângela Mota, citada na p. 79)

Nos anos de 1970 surgiram em Almada outras fontes, não escolares, para o teatro, como o Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria, nascido em 1972 (p. 81), e o Centro Cultural de Almada, fundado em 1979 (p. 88). E na década seguinte nasceu a Companhia de Teatro de Almada (p. 91), uma “parceria estratégica” entre o Grupo de Campolide, que lhe deu origem, e a autarquia almadense (p. 101).
Alguns dos actores envolvidos nestes grupos deram continuidade ao “trabalho de formação teatral nas escolas” que havia sido iniciado nos anos 70 (p. 94).
Em 1984, o Teatro da Academia Almadense organizou a primeira edição da Festa de Teatro de Almada (p. 95), que mais tarde se internacionalizou, e se transformaria no actual Festival de Almada (pp. 95-96).

1996 é o primeiro ano da Mostra de Teatro de Almada (p. 149), “iniciativa que partiu da Câmara Municipal de Almada” (p. 135): “Penso que um dos aspectos interessantes da Mostra foi ter proporcionado aos [diversos] grupos [de teatro com actividade em Almada] esse encontro e o conhecimento mútuo. (…). Os grupos são hoje uma comunidade, que se encontra fora do espaço da Mostra, para aí estabelecer trocas. Há uma enorme mobilidade nalguns elementos, que colaboram com grande naturalidade nos projectos de outros, coisa que antes da Mostra não acontecia, creio.” (Teresa Pereira, citada na p. 136)
A Mostra é a única plataforma de comunicação entre os grupos e a Câmara, uma oportunidade imperdível de contactar com os responsáveis autárquicos e estes comprovarem que o parco apoio público que lhes é dado tem resultados muito positivos, quer na relação de proximidade que existe na comunidade quer na dignidade das suas realizações.” (Maria João Garcia, citada na p. 139)

Outras pistas, respigadas aqui e acolá neste livro, sobre a ligação entre «escola» e «teatro»:
·      Karas (João Teixeira), do grupo «Ninho de Víboras», começou a fazer teatro na Escola Secundária do Monte de Caparica (p. 124);
·      O grupo Artes e Engenhos, com sede na Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova de Lisboa (p. 207);
·      O grupo As Raparigas … de Três Pontinhos foi “formado por ex-alunos da disciplina de Oficina de Expressão Dramática da Escola Básica e Secundária Anselmo de Andrade, no ano lectivo 1999-2000, que haviam trabalhado em contexto escolar A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca.” (p. 211)
·      O grupo B.O.T.A. foi criado por “alguns jovens recém-saídos do ensino secundário – onde tinham participado num clube de teatro, muito activo, dirigido por Isabel Canto, professora de Português e Francês, em colaboração com outras duas docentes, na Escola Secundária nº 2 do Laranjeiro” (p. 215);
·      O Novo Núcleo de Teatro da FCT foi criado por estudantes da Faculdade de Ciências e Tecnologia (p. 277);
·      O grupo Teatro & Teatro teve por “génese o teatro feito em contexto escolar a partir de 1988 pelo professor, encenador e pedagogo teatral Manuel João”, sendo “inicialmente integrado unicamente por ex-alunos de Expressão Dramática da Escola Básica de Corroios” (p. 351).

sábado, 17 de dezembro de 2016

[0025] A importância dos arquivos escolares

Maria João Mogarro publicou em 2006 um artigo intitulado «Arquivos e Educação: a Construção da Memória Educativa».


Este é um tema a que o Encontro sobre Memórias em Educação no nosso território, Almada e Seixal, a realizar daqui a pouco mais de um ano, irá trazer maior compreensão.


Maria João Mogarro escreveu sobre o seu artigo o seguinte “Resumo:

Os arquivos escolares motivam profundas preocupações relativamente a salvaguarda e preservação dos seus documentos, que constituem instrumentos fundamentais para a história da escola e a construção da memória educativa. A sua importância tem vindo a ser reconhecida, conduzindo a uma reflexão sobre a sua preservação, as condições de instalação, a organização correcta dos documentos e o acesso as informações que nele estão contidas. Os arquivos escolares constituem o repositório das fontes de informação directamente relacionadas com o funcionamento das instituições educativas, o que lhes confere uma importância acrescida nos novos caminhos da investigação em educação, que colocam estas instituições numa posição de grande centralidade para a compreensão dos fenómenos educativos e dos processos de socialização das gerações mais jovens.
Neste texto pretende‑se reflectir sobre: o lugar dos arquivos escolares nas instituições educativas; os documentos, a sua natureza e as potencialidades para a investigação em educação; os arquivos escolares numa perspectiva interdisciplinar; os arquivos, a cultura escolar e a construção da memória educativa.

Palavras‑chave: cultura escolar, arquivo, fontes históricas, memória.

Para quem estiver interessado neste artigo, ele pode ser consultado no Repositório do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, e a partir daí guardado, acedendo-o através de: pdf do artigo (no fim, em «Ver / Abrir»).

sábado, 10 de dezembro de 2016

[0024] Uma entrevista sobre «museus», sobre «falar do que se passa hoje», sobre «aprender a lidar com o passado»

Lucinda Canelas, jornalista, entrevistou Chris Whitehead, investigador e professor de Museologia na Universidade de Newcastle, Inglaterra.


Chris Whitehead


Alguns excertos, retirados do jornal «Público» de 6 de Dezembro passado:

No contexto dos museus nacionais, como é que um passado histórico difícil pode contribuir para a formação da identidade de um país?
É um assunto muito complexo. No contexto alemão, por exemplo, lidar com o passado tornou-se absolutamente central na formação da identidade contemporânea, mas há muitos outros países que continuam a não olhar para esse passado problemático. A Noruega, por exemplo, só recentemente começou a lidar com a questão do colaboracionismo com a Alemanha de Hitler e em Itália é ainda muito difícil falar de fascismo – a história que os italianos preferem é a que envolve o outro lado, a resistência, o lado dos bons, porque é mais fácil de contar. E, depois há a questão da Turquia, claro, em que simplesmente se nega qualquer culpabilidade histórica [relativamente ao genocídio arménio]. Há muitas maneiras de olhar para a história que é dura, que é difícil, como parte da identidade das nações; é preciso é fazê-lo, se queremos que aquilo que contamos sobre nós esteja próximo do que realmente aconteceu.
A Alemanha é sempre apresentada como um bom exemplo, o bom aluno no que ao passado diz respeito, mas a forma como se tem abordado o Holocausto em muitos museus pelo mundo fora tornou-se quase um cliché de como tratar um acontecimento terrível…
Sim, essa é uma ideia que tem vindo a tomar forma entre os académicos que estudam o universo dos museus. Há um investigador que chama ao Holocausto “horror confortável” precisamente porque sabemos lidar com ele, porque lidamos com o Holocausto há décadas. Ele torna-se um veículo mais fácil para falar de um passado incómodo, muito mais fácil do que as coisas que estão a acontecer neste momento, por exemplo, temas como a intervenção militar no Iraque ou a não-intervenção na Síria … Talvez não consigamos lidar com eles ainda. De certa maneira, em certos contextos, abordar o Holocausto tornou-se fácil, porque ele tem uma espécie de gramática própria, uma terminologia que muitos dominam. Além disso, há uma prática social que lhe está associada que nós somos capazes de executar …”

Em países como Portugal há uma distância ainda maior do comércio de escravos do império colonial, por exemplo, e mesmo assim os nossos museus não têm o hábito de incluir o tema no seu discurso de forma evidente. Isto acontece também na Inglaterra ou na Holanda? Porquê?
Não sei, talvez por ser mais fácil … No Reino Unido, na Holanda e até na Bélgica continuam a ser temas muito problemáticos. Ainda assim, as pessoas vão a exposições que tocam na história da colonização sabendo que têm de sentir alguma vergonha e algum arrependimento. Mesmo que tudo tenha acontecido no século XVIII ou antes, há uma sensação de ligação deste passado ao que somos, ao que fomos. Os museus dão às pessoas uma oportunidade de ter um comportamento ético em relação a esse momento da história.
Na Holanda, por exemplo, este passado colonial é apresentado com frequência como algo que o país deve lamentar, um episódio vergonhoso que precisa de ser mais explorado. É uma questão de reconhecimento que está ligada a uma política de pedir desculpa publicamente. E os museus podem ser esse lugar onde se pede desculpa pelo passado, algo que os países não fazem oficialmente com facilidade. O que os políticos precisam de perceber é que os museus podem servir para estabelecer um compromisso com a representação do passado tal como ele é e não como preferíamos que fosse. E tudo isto dá um sinal ao presente.
E fazer essa ligação ao presente é essencial para que os museus possam ser melhores na sua relação com o passado?
Certamente. Para melhorar, os museus podem e devem começar por contar a história a partir de diversas perspectivas, não apenas a branca e eurocêntrica. Há sempre muitas leituras a fazer de qualquer acontecimento e elas podem começar agora e depois ir para trás. No caso britânico tivemos abolicionistas e pessoas que, por motivos económicos, estavam interessadas em manter o comércio de escravos. Nessa altura houve um debate público, uma espécie de concurso, e os abolicionistas ganharam. Hoje temos um debate semelhante à volta de perguntas como «Será que o multiculturalismo é positivo?», «Será que está a resultar?». Há uma ligação clara entre estes dois temas separados por centenas de anos e os museus não fazem essa ligação com facilidade e deviam fazê-la para aproximar a discussão das pessoas, para que elas percebam que é uma discussão que também é sua.
Os museus têm tendência a concentrar-se nas dificuldades do passado, mas parecem não ver que elas nos seguem até ao presente. É obrigatório fazer essa ligação. Jo Cox [deputada trabalhista britânica] foi assassinada antes do referendo do «Brexit» por alguém que se dizia movido pela ideologia nazi. O passado está sempre cá.
Porque é que os museus têm dificuldade em lidar com o presente – falta-lhes distância ou vontade?
Há certamente uma falta de vontade, medo da controvérsia. Muitos profissionais dos museus estão mais preocupados com a experiência que oferecem ao visitante, partindo da ideia de que um museu é também um espaço de lazer. Muitos acham que as pessoas não querem ir a um museu para serem confrontadas com as coisas terríveis que vêem nas notícias. Temos de repensar o próprio conceito de museu.
Isso quer dizer que os museus se transformaram em lugares pouco desafiantes do ponto de vista crítico, quando deviam ser sítios para ajudar a pensar?

Sim, podemos olhar para eles assim, como se fossem preguiçosos … Mas também há museus corajosos. O que temos de fazer é descobrir técnicas expositivas para explorar as coisas que estão a acontecer agora. Não temos de contar uma versão final da história, porque ela ainda não acabou, mas precisamos de saber falar sobre o que se está a passar hoje. Para começar, podemos alargar a forma como olhamos para as coisas: porque é que este grupo se comporta desta maneira, porque é que aquele pensa assim, de onde vieram estas ideias? E a intolerância de onde vem? É possível pensar historicamente sobre o presente. Esta é uma maneira de criar uma certa distância que nos permite reflectir sobre o que importa e ter uma perspectiva crítica que não seja demasiado dolorosa.”

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

[0023] Uma outra aprendizagem: os alunos ocupam mil escolas no Brasil

Testemunhou hoje a jornalista Alexandra Lucas Coelho, em artigo no jornal «Público»,
«# Ocupa Pedro II.
Mil escolas ocupadas no Brasil. Dá trabalho ocupar uma escola, um trabalho inédito. Uma geração inédita para um tempo inédito»:

Alexandra Lucas Coelho


1. O moreno Miguel, filho de Mestre Manel, estende a mão para eu entrar na roda. Veio da favela da Rocinha com os rapazes, o tambor, o berimbau, as camisetas que dizem Acorda Capoeira. Lá na favela, é um meio de desviar os meninos do tráfico. Aqui, faz voar os meninos de classe média do Rio de Janeiro, sobretudo brancos, sobretudo de classe média, sobre o chão do colégio público mais antigo e mais famoso do Brasil, fundado há 180 anos pelo imperador Pedro II. Nestes últimos dias do pior ano da vida deles, ocupam a escola há mais de um mês. Votaram por isso, organizaram-se em nove comissões, dormem por turnos, têm oficinas, filmes, palestras, teatro, esta tarde, capoeira. Todos descalços no chão da quadra desportiva do colégio, com os seus pés macios, os seus pulsos delicados, batem palmas, ecoam o canto dos negros trazidos para a colonização do Brasil: Lêlêlê lêlêlê lêlêlê lalala. E, pela primeira vez, um a um, lançam-se no ar.
2. Brasil fora, há umas mil escolas ocupadas por estudantes em luta contra a anunciada reforma do ensino e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que congela gastos públicos por 20 anos, incluindo educação. Dá trabalho ocupar uma escola, trabalho inédito, mais fácil dormir na praia, frente a algum ecrã. Mas esta geração é inédita mesmo. Gente inédita para um tempo inédito. Trabalho diário e frustração diária. Não é mole, não.
3. Na tarde da capoeira no Pedro II conheci estudantes dos 12 aos 19 anos. O colégio tem 12 campus no Rio de Janeiro, e uns seis estão ocupados. Fui sem aviso ao do Humaitá, na Zona Sul. Cartazes nas grades, portão fechado, mas acenando para a entrada os estudantes do lado de lá do segundo gradeamento gritam que é só puxar o fecho. O gradeamento é para proteger a ocupação enquanto quem vem se identifica. Não me pedem um cartão, só o nome, que anotam num grande caderno. Seguindo pelo pátio-corredor central, palavras de ordem pintadas, escritas, coladas (Sua saúde mental vale mais que suas notas; Sem Temer foi sempre o nosso lema). Numa parede estão afixadas as nove comissões (Comida, Limpeza, Saúde, Actividades, Segurança, Comunicação, Pais, Infraestruturas, Tesouraria), com as tarefas mais imediatas, e o nome dos estudantes responsáveis. Avançando até aos fundos, há uma horta do lado esquerdo, vários meninos lá dentro, e no fim de tudo a quadra onde já vibra o berimbau da capoeira. Dezenas na roda.
4. Quando a roda termina, sento-me com um dos estudantes mais velhos nos degraus da bancada de cimento, aos pés da frase: NADA DEVE PARECER IMPOSSÍVEL DE MUDAR. Qualquer coisa nele lembra um muito jovem Caetano Veloso chegado da Bahia, talvez o corpo esguio, talvez a cor morena, talvez a barbicha, os caracóis, a voz, aquele jeito lento, baiano de falar coisas tremendas com um vagar. Ele tem 19 anos e um brinco balançando na orelha esquerda, mora em Vila Isabel, bairro carioca da Zona Norte onde há cem anos morava Noel Rosa, um dos maiores sambistas da história. É difícil virar estudante do mais célebre colégio público, tem sorteio e tem prova, este finalista entrou por prova, e a primeira coisa que ele me diz não é uma declaração de triunfo, nem de estratégia, mas como estas quatro semanas de ocupação balançaram tanto a cabeça dele que por vezes vira um “distúrbio de personalidade”. De repente, o mundo ficou do avesso. E não é fácil, ele repete, estar aqui junto, fazer coisa junto, não é fácil, ele repete, a gente tem problemas. Uma pequena história da humanidade, não? Esses meninos não estão aqui posando.
5. Poucos aqui são da Zona Norte, como ele. Ele pega dois ônibus para chegar, uma hora até à escola. Nas primeiras semanas da ocupação ficou directo. «Sempre tem um grupo dormindo, no mínimo umas 25 pessoas.» Nas salas de aula do andar de cima, ele aponta as janelas, pede desculpa por não me levar lá, combinaram que iam preservar o dormitório dos olhares exteriores. Cada um trouxe o que precisava para dormir. Há duche, mas só água fria. E há sempre um grupo acordado, vigiando. «Tem um ponto em que a gente fica um pouco desgastado, com necessidade da família.» Muitos pais vêm apoiar, os pais dele também vieram, todos os dias há pais aqui, e professores. Os professores estão em greve, já estavam. É uma luta com várias frentes, a que se juntam em alguns momentos os mais novos. Mas na ocupação, dormindo, eles têm entre 15 e 19 anos. «É muita gente diferente. Tem choque o tempo todo, formam-se grupos, diferentes posicionamentos. A gente tem que buscar se entender.» Pausa, e insiste: «A gente tem dificuldades.» E, de alguma maneira, esta fraqueza é parte do novo, e genuíno.
6. Mas tem que ter essa PEC, tem que ter controle de gastos, diz uma amiga com quem almoço no dia seguinte, que sabe tudo dos podres das finanças, do Brasil em geral. Esses meninos são incríveis, mas onde eles querem chegar?, ela pergunta. Qual o objectivo deles? E, de alguma maneira, estas perguntas já não são deste tempo, ou desta geração. Não tenho uma resposta para o que a minha amiga pergunta. Penso que talvez eles dissessem que não há uma só resposta, ou que mais do que «chegar» eles querem estar acordados, agora, aqui. Só sei que eles estão lutando sabendo bem como é difícil. Como todos os dias no Brasil tem derrota.
7. Nos últimos anos, o Pedro II passou a ter um reitor eleito por professores, funcionários e estudantes (um terço de votos para cada), Oscar Halac. Quando o colégio aboliu a distinção de uniforme consoante o género e foi criticado por isso, o reitor disse que «a escola não deve estar desvinculada de seu tempo e momento histórico». Halav vê o actual movimento de estudantes no Brasil como «uma evolução do processo sociológico», em que «o país começa se auto conhecer, a ter um processo de uma nação democrática». Declarou-se contra qualquer intervenção policial na ocupação, e desvalorizou boatos sobre drogas e relações sexuais dentro do colégio, considerando que isso «só contribui para um maior desentendimento». Rematou com uma citação de Gonzaguinha: «Eu fico com a pureza da resposta das crianças. É a vida, é bonita.»
8. «A escola tradicional não oferece muito pra gente, oferece uma parada enrijecida», diz o meu quase baiano de Vila Isabel, levando-me ao pátio onde está a passar um filme, à sala da limpeza cheia de detergentes e esfregões doados. «A gente aqui reinventa o espaço. Mas não é fácil desenvolver um projecto político pedagógico alternativo. O ideal não é consensual.» Oficialmente não há uma liderança, simplesmente uns dedicam-se mais à ocupação. No início tomavam decisões em assembleia, mas começaram a sentir que isso também era algo velho. Se o colégio tinha uma tradição de grémio (associação de estudantes) ligado ao PSOL (partido de esquerda), agora houve um corte com a partidarização. O meu interlocutor é dos mais activos, está em duas comissões, mas nem eu pergunto para onde eles vão nem ele responde. «Só sei que vou sair daqui com um aprendizado para a vida. Recebo muita informação, a nossa cabeça fica muito cheia, é uma mudança radical, quebrar ociosidade, improdutividade, o ficar encostado. Aqui, a gente está-se propondo fazer coisas.» Coisas políticas fora de partidos. Ele toca tuba, até à ocupação tocava em shows, na rua, mas agora a música está em pausa, tal como a ideia da faculdade. Faculdade, próximo ano: visto daqui, de repente isso é muito remoto.”


Esta pode ser uma oferta dos jovens à escola tradicional …

domingo, 4 de dezembro de 2016

[0022] Visita guiada ao Museu de Metrologia

No próximo dia 21 de Dezembro, com início às 10h00, vai ser realizada uma visita guiada ao Museu de Metrologia, conduzida pelo seu responsável, o Dr. António Neves e aberta a quem nela quiser participar.

O Museu de Metrologia faz parte do Instituto Português da Qualidade (IPQ) e situa-se nas instalações deste, na Rua António Gião, 2, 2829-513 Caparica.

O acesso tanto pode ser feito pela via rápida para a Costa da Caparica (como se mostra no mapa, retirado de www.ipq.pt) como pelo Pragal (na direcção da Estação):


Tal como se explica no respectivo sítio, www1.ipq.pt/museu (onde pode ser realizada uma visita virtual), o “Museu de Metrologia do IPQ pretende ser uma referência nacional na divulgação do património metrológico com interesse histórico e da história da metrologia em Portugal e tem por missão promover a recolha, preservação, estudo e divulgação deste património.
O Instituto Português da Qualidade possui um vasto espólio patrimonial de pesos e medidas, provenientes de todo o país.
Merecem destaque as colecções de padrões nacionais das várias unidades de medida, utilizadas em diferentes épocas históricas, que permitem classificar a metrologia nacional em três períodos fundamentais, anteriores ao Sistema Internacional de Unidades (SI):
·       A Idade Média, caracterizada pela diversidade de padrões e respectivos valores;
·       A Formação do Estado Moderno, com início na Reforma Manuelina: tentativa de criação de um sistema uniforme;
·       O Sistema Métrico Decimal, divulgado e promovido a partir de meados do séc. XIX.”

Medidas para líquidos, do tempo de D. Sebastião:
Fotografia de Eva Blum (em 20 de Maio de 2014)

sábado, 3 de dezembro de 2016

[0021] O Xadrez no currículo da Escola 31 de Janeiro (Parede)

A autonomia pressupõe a capacidade de sair dos trilhos repetidos e de construir o próprio caminho, sem perder de vista o caminho dos outros.
A jornalista Isabel Leiria deu-nos uma bela descrição da autonomia da Escola 31 de Janeiro, no jornal «Público de 22 de Outubro de 2007:

«Escola da Parede apostou no xadrez para melhorar os resultados»

Na Escola 31 de Janeiro, o xadrez é uma disciplina como todas as outras, de frequência obrigatória e com direito a programa e avaliação. Os resultados são positivos


A aula é de Matemática, só que no quadro branco não estão algarismos, nem contas, mas um enorme tabuleiro de xadrez colado e algumas peças. Perante duas dezenas de alunos do 2º ano, o professor Vítor Guerra faz a revisão da matéria dada na semana anterior. Como se pode mover o bispo, o cavalo e a torre? Pergunta quem quer ir mostrar e são vinte braços espetados no ar, acompanhados de muitas vozes a pedir: «Eu! Eu! Eu!»
Vítor Guerra, responsável pelo ensino de xadrez na Escola 31 de Janeiro, num projecto que faz pioneiro no país este quase centenário colégio na Parede, tenta convencer os alunos a trocar um peão por um bispo ou um cavalo por uma rainha. Fazem-se as contas aos pontos de cada peça e exercita-se o cálculo.
De boca aberta e olhos arregalados, a turma assiste à negociação entre Vítor e Daniela. O professor quer o rei que a aluna tem e oferece um cavalo e uma dama. Duas. Três. A cada proposta sobem de tom os conselhos dos colegas: «Não aceites, não aceites!», como se tentassem evitar uma tragédia. Entre jogadas e peças comidas, a hora passa rapidamente e os alunos regressam à sua sala habitual.
«Gosto mais destas aulas porque nas outras aprende-se no caderno e aqui aprende-se a jogar. É divertido, tem muitas peças que parecem pessoas», diz Tomás, sete anos.
Raciocínio e saber perder
Há quatro anos que o xadrez faz parte do currículo do ensino básico (no 1º ciclo integra a componente da Matemática) e todos os quase 400 alunos da Escola 31 de Janeiro, do 2º ao 9º, têm obrigatoriamente de frequentar esta disciplina. É aliás uma actividade levada tão a sério que tem programa - da posição inicial das peças à técnica do mate com 2 cavalos aprendida no último ano - e é sujeita a avaliação.
«Há seis, sete anos começámos a sentir que havia alguns problemas com a Matemática. Por outro lado, notávamos que os alunos davam muitas opiniões mas eram incapazes de argumentar. Não conseguiam construir um caminho para chegar a uma conclusão. Sabíamos de experiências do uso do xadrez em escolas lá fora e decidimos avançar», explica Vítor Rodrigues, director da escola.
E ao fim de quatro anos, Vítor Rodrigues não tem dúvidas de que já se notam melhorias, sobretudo entre os alunos que já praticam há mais tempo. «Avançou-se muito ao nível do pensamento lógico, da argumentação. E por causa dos jogos e dos torneios, os miúdos habituam-se a saber ganhar e a saber perder.»
Formado em Matemática, jogador profissional, árbitro e professor de xadrez, Vítor Guerra é o responsável por este projecto - este ano iniciou-se num outro colégio em Sintra - praticamente desde o início. «Há estudos que indicam que, com a prática do xadrez, há um implemento de 12 a 15 por cento na melhoria dos resultados escolares. Sobretudo entre os que praticam com regularidade e se preparam para os torneios.»
Na turma que se segue, do 4º ano, Vítor Guerra já identificou os dois alunos que gostaria que tivessem uma preparação especial. É que para além da hora semanal frequentada por todos, há cerca de 80 que, por demonstrarem grande interesse ou apetência, têm aulas de apoio à competição, em horário pós-lectivo.
Inês, 9 anos, é uma delas. Aprendeu a jogar com o avô, continuou a praticar na escola e agora garante que já lhe ganha. «Gosto de jogar porque se pode fazer truques em que as peças ficam encurraladas e comer», explica.
De resto, já são visíveis frutos do investimento feito e uma equipa do escalão menores de 10 anos venceu este ano o torneio mundial de escolas, na República Checa.
Para muitos, o xadrez tornou-se mais do que uma disciplina e não é raro encontrar alunos a jogar nos intervalos, nos pátios e corredores da escola.
Dentro da sala, a prática também é levada a sério. Frente a frente, 26 alunos do 4º ano protagonizam 13 jogos em simultâneo, como se de um torneio se tratasse. Há uma folha de registo das jogadas para cada um e na mesa só há lugar para o tabuleiro, o lápis, a borracha e o afia. «Estão prontos? Silêncio. Cumprimentem-se [neste momento todos apertam a mão ao seu "adversário"]. Podem começar», indica o professor. Ouve-se pouquíssimo barulho na sala, mas Tomás tem dificuldade em concentrar-se e pede a Vítor que faça os colegas falar mais baixo.
«A partir de três, quatro anos de experiência, estes alunos já têm uma grande capacidade de concentração e conseguem ficar três horas a jogar», explica. E a ideia é começar ainda mais cedo, diz Vítor Rodrigues. «Dentro de dois anos esperamos começar com o xadrez como matéria obrigatória logo a partir do 1º ano. Mas isto implica mudanças na aprendizagem ao nível do pré-escolar.»
E se no início as famílias estranharam, «agora procuram-nos por causa do xadrez», afirma o director.”