Alguns excertos, retirados do jornal «Público» de 6 de Dezembro passado:
“No contexto dos museus nacionais, como é que um
passado histórico difícil pode contribuir para a formação da identidade de um
país?
É um assunto muito complexo. No contexto alemão, por
exemplo, lidar com o passado tornou-se absolutamente central na formação da
identidade contemporânea, mas há muitos outros países que continuam a não olhar
para esse passado problemático. A Noruega, por exemplo, só recentemente começou
a lidar com a questão do colaboracionismo com a Alemanha de Hitler e em Itália
é ainda muito difícil falar de fascismo – a história que os italianos preferem
é a que envolve o outro lado, a resistência, o lado dos bons, porque é mais
fácil de contar. E, depois há a questão da Turquia, claro, em que simplesmente
se nega qualquer culpabilidade histórica [relativamente ao genocídio arménio].
Há muitas maneiras de olhar para a história que é dura, que é difícil, como
parte da identidade das nações; é preciso é fazê-lo, se queremos que aquilo que
contamos sobre nós esteja próximo do que realmente aconteceu.
A Alemanha é sempre apresentada como um bom exemplo, o
bom aluno no que ao passado diz respeito, mas a forma como se tem abordado o
Holocausto em muitos museus pelo mundo fora tornou-se quase um cliché de como
tratar um acontecimento terrível…
Sim, essa é uma ideia que tem vindo a tomar forma
entre os académicos que estudam o universo dos museus. Há um investigador que
chama ao Holocausto “horror confortável” precisamente porque sabemos lidar com
ele, porque lidamos com o Holocausto há décadas. Ele torna-se um veículo mais
fácil para falar de um passado incómodo, muito mais fácil do que as coisas que
estão a acontecer neste momento, por exemplo, temas como a intervenção militar
no Iraque ou a não-intervenção na Síria … Talvez não consigamos lidar com eles ainda.
De certa maneira, em certos contextos, abordar o Holocausto tornou-se fácil,
porque ele tem uma espécie de gramática própria, uma terminologia que muitos
dominam. Além disso, há uma prática social que lhe está associada que nós somos
capazes de executar …”
“Em países como Portugal há uma distância ainda maior
do comércio de escravos do império colonial, por exemplo, e mesmo assim os
nossos museus não têm o hábito de incluir o tema no seu discurso de forma
evidente. Isto acontece também na Inglaterra ou na Holanda? Porquê?
Não sei, talvez por ser mais fácil … No Reino Unido,
na Holanda e até na Bélgica continuam a ser temas muito problemáticos. Ainda
assim, as pessoas vão a exposições que tocam na história da colonização sabendo
que têm de sentir alguma vergonha e algum arrependimento. Mesmo que tudo tenha
acontecido no século XVIII ou antes, há uma sensação de ligação deste passado
ao que somos, ao que fomos. Os museus dão às pessoas uma oportunidade de ter um
comportamento ético em relação a esse momento da história.
Na Holanda, por exemplo, este passado colonial é
apresentado com frequência como algo que o país deve lamentar, um episódio
vergonhoso que precisa de ser mais explorado. É uma questão de reconhecimento que
está ligada a uma política de pedir desculpa publicamente. E os museus podem
ser esse lugar onde se pede desculpa pelo passado, algo que os países não fazem
oficialmente com facilidade. O que os políticos precisam de perceber é que os
museus podem servir para estabelecer um compromisso com a representação do
passado tal como ele é e não como preferíamos que fosse. E tudo isto dá um
sinal ao presente.
E fazer essa ligação ao presente é essencial para que
os museus possam ser melhores na sua relação com o passado?
Certamente. Para melhorar, os museus podem e devem
começar por contar a história a partir de diversas perspectivas, não apenas a
branca e eurocêntrica. Há sempre muitas leituras a fazer de qualquer
acontecimento e elas podem começar agora e depois ir para trás. No caso
britânico tivemos abolicionistas e pessoas que, por motivos económicos, estavam
interessadas em manter o comércio de escravos. Nessa altura houve um debate
público, uma espécie de concurso, e os abolicionistas ganharam. Hoje temos um
debate semelhante à volta de perguntas como «Será que o multiculturalismo é
positivo?», «Será que está a resultar?». Há uma ligação clara entre estes dois
temas separados por centenas de anos e os museus não fazem essa ligação com
facilidade e deviam fazê-la para aproximar a discussão das pessoas, para que
elas percebam que é uma discussão que também é sua.
Os museus têm tendência a concentrar-se nas
dificuldades do passado, mas parecem não ver que elas nos seguem até ao
presente. É obrigatório fazer essa ligação. Jo
Cox [deputada trabalhista britânica] foi assassinada antes do referendo do «Brexit» por alguém
que se dizia movido pela ideologia nazi. O passado está sempre cá.
Porque é que os museus têm dificuldade em lidar com o
presente – falta-lhes distância ou vontade?
Há certamente uma falta de vontade, medo da
controvérsia. Muitos profissionais dos museus estão mais preocupados com a
experiência que oferecem ao visitante, partindo da ideia de que um museu é
também um espaço de lazer. Muitos acham que as pessoas não querem ir a um museu
para serem confrontadas com as coisas terríveis que vêem nas notícias. Temos de
repensar o próprio conceito de museu.
Isso quer dizer que os museus se transformaram em
lugares pouco desafiantes do ponto de vista crítico, quando deviam ser sítios
para ajudar a pensar?
Sim, podemos olhar para eles assim, como se fossem
preguiçosos … Mas também há museus corajosos. O que temos de fazer é descobrir
técnicas expositivas para explorar as coisas que estão a acontecer agora. Não
temos de contar uma versão final da história, porque ela ainda não acabou, mas
precisamos de saber falar sobre o que se está a passar hoje. Para começar,
podemos alargar a forma como olhamos para as coisas: porque é que este grupo se
comporta desta maneira, porque é que aquele pensa assim, de onde vieram estas
ideias? E a intolerância de onde vem? É possível pensar historicamente sobre o
presente. Esta é uma maneira de criar uma certa distância que nos permite
reflectir sobre o que importa e ter uma perspectiva crítica que não seja
demasiado dolorosa.”
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